sexta-feira, 29 de junho de 2012

Afinal, qual é o problema da educação?



O governo culpa os professores pela má qualidade do ensino, mas não enxerga o verdadeiro problema e tenta resolvê-lo com receitas prontas e acabadas. Em São Paulo o governo criou  a progressão continuada, os ciclos, a avaliação contínua, a recuperação paralela, deu um novo sentido ao conceito de escola (a escola aprendente), deu também um novo sentido ao papel do coordenador. Contudo, nenhuma dessas ações surtiu efeito. As avaliações externas como Saresp, Saeb, Prova Brasil demonstram resultados pífios. O governo se exime da culpa e diz que o problema está na formação dos professores.  Desde então tem feito esforços para dar uma melhor formação aos professores através de cursos e de uma prática reflexiva nas HTPCs. Para o governo, os problemas educacionais são constantemente reduzidos a questões que podem ser resolvidas no âmbito do indivíduo, do esforço pessoal do professor. O professor é visto como o Messias da educação; é um ser dotado de inesgotável força de vontade que deve estar permanente disposto a se superar no cumprimento de sua missão. O importante é que cada um faça sua parte para que a educação melhore. O que o governo ainda não enxergou, por miopia, é que os problemas da educação são problemas políticos, sociais e culturais. São vários os fatores que levam o aluno a um déficit de aprendizagem. Citaremos apenas alguns deles:
Primeiro, é um problema de política pedagógica, pois institui a progressão continuada, que em termos práticos torna-se progressão automática. O aluno perde a motivação para aprender, pois sabe que não precisará fazer esforços para passar de ano. O professor torna-se impotente diante dessa situação e perde sua autoridade, pois a nota que ele aufere do aluno não tem valor Em conseqüência disso, a indisciplina se institucionaliza. A escola torna-se o local do encontro, da amizade, do namoro, da sociabilidade, mas quase nunca do ensino. Outro problema ligado à progressão continuada é fato de as crianças chegarem ao final do primeiro ciclo sem saber ler e escrever ou chegar ao ensino médio analfabetos funcionais, sendo incapazes de interpretar um texto.  Isso ocorre porque o aluno não consegue  aprender novas competências por causa de déficits de aprendizagem em séries anteriores. O aluno sente dificuldade de desenvolver novos esquemas mentais e conhecimentos  necessários exigidos. Dessa forma, ele não consegue assimilar os conteúdos e habilidades necessários para seguir em frente.
Segundo, o problema da educação é também um problema estrutural. A escola pública no Brasil tem um modelo arquitetônico prisional. Michel Foucault, filósofo Francês, já havia estudados os males que este tipo de arquitetura causa ao indivíduo. Para ele, este tipo de arquitetura é uma arquitetura de esquadrinhamento, da observação, da disciplina, do controle, cujo único objetivo e controlar os indivíduos criando seres dóceis e serviçais ao mercado de trabalho. O aluno  da escola pública vive numa prisão. A falta de comprometimento  nos estudos,  a desmotivação, a falta de interesse do aluno é em boa parte criada por esta estrutura prisional, onde as aulas tornam-se monótonas e chatas. Falta  a escola pública  uma estrutura material para que o aluno goste de estudar, como áreas verdes, quadras, equipamentos, salas de estudo, salas de teatro, salas de vídeo, salas de ginástica, biblioteca, materiais para uso em sala de aula, etc.  Um ambiente agradável com uma estrutura impecável é imprescindível para que o aluno aprenda.
Terceiro, o problema da educação é também social. Os problemas educacionais refletem as contradições da própria sociedade. Na base da educação há uma família geralmente carente material e intelectualmente. Pobreza, fome,  falta de trabalho e falta de perspectiva são fatores que minam a educação. O Brasil é um das dez maiores economias do mundo, mas em indicadores sociais ela está ao lado de Botsuana e Moçambique: 30 milhões vivem em estado de miséria; 80 milhões não conseguem consumir as 2240 calorias mínimas exigidas para uma vida normal; 60% dos trabalhadores no Brasil ganham até um salário mínimo. 50% da riqueza concentram-se nas mãos de 10% da população que ganham mais de dez salários. São Paulo, a cidade mais rica do Brasil, não foge a estes dados. O subemprego é uma realidade da grande maioria das famílias paulistas: faxineiras, camelos, lavadores de carro, pedreiros, pintores, eletricistas ocasionais são comuns. Tais pessoas apresentam baixo nível de consumo e renda e baixo nível educacional sendo incapazes de acompanhar seus filhos e dar uma boa assistência a eles.
Quarto, é um problema de política salarial e de valorização do professor. Os baixos salários, o descaso, o desrespeito, a imposição de políticas pedagógicas; tudo isso somado têm reflexos na educação. Os bons salários de alguns grupos de funcionários públicos, como os de juízes, promotores e políticos é provocado pelo subdesenvolvimento de outros grupos, como o de professores. Para que alguns grupos possam receber melhores salários e acumular patrimônios outros grupos necessitam ser explorados e sacrificados. O acesso aos benefícios está desigualmente repartido. Em conseqüência dos baixos salários e dos descasos com a classe, o professor perde a motivação, não tem prazer em dar aulas, resigna-se, não fazendo um bom trabalho.
Quinto, é um problema cultural, pois a sociedade não faz cobranças à escola. Nas escolas públicas não há colegiados, não há conselhos, não há grêmios escolares. As desvalorizações por parte da sociedade brasileira em relação ao saber e ao conhecimento têm reflexos em toda estrutura educacional. Uma sociedade que não valoriza o conhecimento é uma sociedade sem história, sem memória. A participação da sociedade como um todo nas questões educacionais deve ser o cimento que constrói a nossa cultura, que defende as sociedades locais, que preserve nossa memória e consciência contra as ameaças de grupos , de ideologias e de interesses políticos. A participação da comunidade na escola é imprescindível para melhorar a qualidade do ensino e para gerar a consciência política e reflexiva sobre os fatos.
Como vimos, O problema da  educação não pode se resolvido no âmbito do microcosmo da escola e do esforço individual de cada um. O governo reduz o problema da educação em termos operacionais, ao voluntarismo. “Escola da família”, “amigo da escola”, “escola para todos” são termos que nos mostram que cabe a comunidade e as professores resolver os problemas da educação. As idéias vinculadas à TV de um professor esforçado, voluntarioso, feliz, decidido a resolver os problemas da educação não condiz com a realidade. Educação não é auto-ajuda Os problemas educacionais não podem ser resolvidos apenas no âmbito do individuo, da comunidade e do esforço pessoal do professor. O problema da educação é antes de tudo um problema político e social.

Marx e Nietzsche:um diálogo possível


Por Michel Aires de Souza
Será que é possível aproximar as filosofias de Marx e Nietzsche? Suas teorias são completamente contrárias, pois um filosofa sobre a escassez e o outro sobre a superabundância; um filosofa para os trabalhadores, pobres e oprimidos e o outro para os fortes e dominadores; um filosofa sobre a política e a economia e o outro sobre o poder e a moral.
          Marx criou uma teoria política que explica a história humana como a história da luta de classes. Ele postulou o fim da sociedade capitalista a partir de contradições internas, que culminaria com a revolução proletária e a tomada do poder. Seu principal livro é o “Capital”, que contém uma interpretação sócio-econômica da histórica, conhecida como materialismo-histórico. Também escreveu a “Ideologia Alemã”, onde desvelou os mecanismos de dominação da minoria mais rica sobre o resto da população. Através do seu conceito de ideologia, mostrou-nos que a consciência que temos de nós mesmos e do mundo  é uma falsa consciência, mantendo-nos alienados de si mesmo e dos modos de produção. A filosofia de Marx é uma tentativa de transformar a sociedade e libertar o ser humano da repressão e da alienação, através de uma mudança revolucionária.
     Nietzsche, ao contrário de Marx, tem horror às massas e aos trabalhadores, é o filósofo do poder e da vontade de potência. Enquanto Marx tornou-se o filósofo dos proletários, excluídos e miseráveis, Nietzsche rendeu homenagens aos valores dos fortes e poderosos, tornando-se inimigo do “amolecimento moderno dos sentimentos” e condenando o homem moral, fraco e religioso. Com isso, propôs-se a si mesmo fazer uma crítica dos valores morais, colocando em questão o próprio valor desses valores. Ele também é considerado o grande crítico da civilização ocidental racionalista, sua crítica está na raiz do que chamamos hoje de “crise da modernidade”. Nietzsche identificou a razão e a racionalidade com a decadência e o ódio aos instintos. A racionalidade desde o nascimento da filosofia tornou a razão (logos) o paradigma para o mundo ocidental, fundamentado nas categorias éticas que têm orientado os homens ao longo da história, reprimindo os instintos de vida celebrados pela tragédia grega, em nome de uma vida ética, consciente, sem instinto. Para ele o “logos” subjugou os instintos criadores. O homem trágico que age guiado pelos instintos foi substituído pelo homem racional. A vida foi subjugada pela razão. A filosofia de Nietzsche é uma filosofia dos afetos, das paixões e desejos, que contempla o individualismo, a força, a abundância e os instintos de vida.  
        Apesar das ressalvas que podemos fazer às filosofias de Marx e Nietzsche, é possível um diálogo entre esses dois pensadores, pois ambos respondem a uma mesma experiência histórica, ambos representam uma mudança decisiva no modo de compreender o homem, a cultura, a sociedade e o poder. Mas o que há de mais peculiar,  é que ambos possuem uma mesma perspectiva quanto à gênese do sujeito e do pensamento. Ambos concordam que o ser humano não é algo acabado, pronto, estável, não existe uma natureza humana já definida. O sujeito não é uma idealidade auto-suficiente e incondicionada. Para Marx o sujeito é determinado por aquilo que ele faz. O sujeito é determinado pelo seu “ser social”. É o comportamento material que fomenta suas representações e pensamento. Marx nos ensinou que, se examinarmos a maneira pelas quais os homens produzem os bens necessários à vida, é possível compreender as formas de seu pensamento, tais como sua moral, religião e filosofia. “A produção de idéias, de representações e da consciência está em primeiro lugar direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens (…)” (Marx, 1976, p.25). Nietzsche não pensa diferente. Enquanto Marx valoriza os modos de produção na gênese do sujeito e do pensamento, Nietzsche valoriza o comércio como valor civilizador e formador da consciência. Em seu livro “Genealogia da Moral” Nietzsche se opõe à idéia de origem do sujeito e passa a compreender este através de uma genealogia, que o concebe emergindo através de relações de poder, através de um turbilhão de forças que o atinge. Não existe uma identidade metafísica, o ser humano não é um átomo, uma mônada. O sujeito se constitui no terreno dos acontecimentos históricos, das contradições, das relações de força e poder. O conceito de genealogia concebe o sujeito enquanto ser no mundo, onde o corpo se torna visível e um efeito dos embates de forças. Tal como em Marx, as formas de consciência como a filosofia, a moral, a cultura e as leis emergem em Nietzsche através das condições materiais de existência. O sujeito como ser racional e moral surge através das relações de troca e intercâmbio material entre os homens. Com Nietzsche aprendemos que “estabelecer preços, medir valores, imaginar equivalência, trocar – isso ocupou de tal maneira o mais antigo pensamento do homem que num certo sentido constituiu o pensamento: aí se cultivou a mais velha perspicácia, aí se poderia situar o primeiro impulso do orgulho humano, seu sentimento de primazia frente aos outros animais” (Nietzsche, 1988, p.73). É por meio  desses dois livros, a “ideologia Alemã” e a “Genealogia da moral”, que Marx e Nietzsche se reconciliam.
         Para Marx o mundo não é uma manifestação das idéias. A história universal não é uma manifestação da razão. Marx em seu texto “Ideologia Alemã” constrói uma ciência da história e toma o materialismo como objeto dessa ciência. Com isso não é mais o desenvolvimento geral do espírito humano que explica a vida social como postulava o idealismo. Para Marx o pensamento é o reflexo do desenvolvimento material objetivo da história. O postulado básico de toda história humana são os indivíduos reais, a sua ação e suas condições reais de sobrevivência. O papel do historiador é o de entender a realidade partindo das condições materiais de existência dos indivíduos, assim deve entender os fios que reconstituem a trama histórica. Busca compreender a conexão e formas de intercâmbio que vão se delineando como uma história universal. Na opinião de Marx, são as formas específicas de produção que determinam as idéias dos homens e as configurações culturais. As idéias religiosas, jurídicas, morais são reflexos das relações econômicas. Decorre disso, que o próprio homem é determinado pelo seu “ser social”. É o comportamento material que fomenta suas representações e pensamento. “A forma como os indivíduos manifestam a sua vida, refletem muito exatamente aquilo que são. O que são, coincide, portanto, com a sua produção, isto é, tanto com aquilo que produzem como a forma como produzem. Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção” (Marx, 1976, p.19).
            Em Nietzsche a gênese do sujeito e do pensamento surge a partir das relações de intercâmbio material entre os homens, uma relação entre credor e devedor. Essa tese é mostrada na segunda dissertação do seu livro “Genealogia da Moral”. Segundo sua tese a relação entre credor e devedor tem um caráter civilizador, foi esta experiência cruel que estabeleceu a consciência e os valores morais na espécie humana. O indivíduo que não pagava uma divida ou não cumpria um contrato deveria sofrer uma experiência cruel na mão do seu credor. Não pagar uma divida poderia significar perder uma parte do seu corpo, ser fervido em óleo quente, ser comido por formigas ou perder sua mulher. Para que o homem adquirisse consciência foi preciso muitas mutilações, castrações, penhores e sacrifícios. “Pense-se nos velhos castigos alemães, como a apedrejamento (-a lenda já fazia cair à pedra sobre a cabeça do culpado) a roda (a mais característica invenção, a especialidade do gênio alemão no reino dos castigos!), o empalamento, o dilaceramento ou pisoteamento por cavalos (o ‘esquaterjamento’), a fervura do criminoso em óleo ou vinho (ainda nos séculos quatorze e quinze), o popular esfolamento (‘corte de tiras’), a excisão da carne do peito; e também a prática de cobrir o mal-feitor de mel e deixá-lo às moscas, sob o sol ardente. Com a ajuda de tais imagens e procedimentos, termina-se por reter na memória cinco ou seis ‘não-quero’, com as quais se fez uma promessa, a fim de viver entre os benefícios da sociedade – e realmente! com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente a ‘razão’!” (Nietzsche, 1988, p.63).  Foi por meio desta experiência cruel que surgiu a faculdade que julga, discerne, compara. A razão tornou-se relação calculada entre meios e fins, tornou-se cálculo, operação e procedimento eficaz. O pensamento surgiu por meio cruéis e terríveis. O homem aprendeu “a distinguir o acontecimento casual do necessário, a pensar de maneira casual, a ver e antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer com segurança o fim e os meios para o fim, a calcular, contar, confiar – para isto, quanto não precisou antes se tornar ele próprio confiável, constante, necessário…” (Nietzsche, 1988, p.59).
        Esse sistema de crueldade não foi somente responsável por erigir a razão enquanto a faculdade que calcula e relaciona os meios com os fins, mas também como faculdade moral que compara entre o certo e o errado, entre o útil e prejudicial.  Nas relações práticas de comércio a memória foi treinada para a recordação dos deveres, das obrigações, dos contratos e compromissos. O não comprimento dos deveres criou a memória da má consciência, da culpa e do pecado. Na análise nitzscheana, o conceito moral de culpa teve origem no conceito concreto de “dívida”. Ele previu a origem da justiça e da moralidade dos costumes nas relações contratuais entre credor e devedor. A culpa não surge ligada à autonomia da vontade ou ao pecado religioso. Ela surge das relações de comércio e troca de bens e dinheiro. Ela surge da dívida. Através do medo e do terror das penalidades se fomentou a culpa na espécie humana. O não pagamento da dívida produz o castigo e a consciência do castigo produz a culpa. O indivíduo se sente culpado. Ele sabe que sua falta pode lhe causar o prejuízo de uma parte de seu corpo ou a perda de sua mulher. Foi assim que surgiu o homem responsável capaz de cumprir promessas.
         O diagnóstico de Nietzsche mostrou que o sentimento de culpa e obrigação pessoal surge da relação entre comprador e vendedor, credor e devedor. Esse foi o primeiro momento em que o homem aprendeu a comparar uma pessoa com a outra, a medir uma pessoa com outra. O homem é o único animal que tem valores, Nietzsche o chamou de “animal avaliador”. Comprar e vender passou a fazer parte da constituição psíquica dos indivíduos. O sentimento de troca, contrato, débito, direito, obrigação, compensação na medida em que começaram a fazer parte das práticas sociais, criou o hábito no homem de comparar, medir, calcular. A partir daí surgiu à razão e a consciência moral. “Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sóbria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto o seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as ‘coisas boas’”. (Nietzsche, 1988, p.63).
        Do nosso ponto de vista, portanto, Marx e Nietzsche possuem uma mesma perspectiva quanto à gênese do sujeito e do pensamento. As formas de ser e pensar do ser humano foram determinados por aquilo que ele faz. O que o homem sempre fez em toda a história da civilização foi produzir e fazer comércio. Isso acabou por se impor a sua estrutura psíquica formando seus modos de ser, pensar, agir e valorizar. A racionalidade da produção e do comércio entendida como relação calculada entre meios e fins, definindo-se pela eficiência e pela capacidade de classificar, ordenar, dispor os objetos e os homens formou a razão como a faculdade de classificação, inferência e dedução, ou seja, como a faculdade que possibilita o funcionamento abstrato do mecanismo de pensamento. Da mesma forma através das relações de troca surgiram os valores, regras e normas do convívio social que fomentou a moralidade dos costumes. Foram os modos de produção e o comércio material entre os homens que construíram todas as instituições democráticas que conhecemos hoje. A produção e o comércio são produtos e ingredientes de nossa civilização.
BIBLIOGRAFIA
MARX, K & ENGELS, F. Ideologia Alemã. Lisboa. Editorial Presença, 1976.
NIETZSCHE,F.W. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César Souza. São Paulo, Brasiliense, 1988.

O conceito de “Eu” em Freud


A noção de “Eu” em Freud só pode ser entendida a partir de sua teoria do funcionamento mental.  Mas antes de explicarmos esse  funcionamento  temos que entender os  três postulados que o determinam. Primeiramente,  há certas quantidades de energia não muito bem especificadas que alimentam os processos psíquicos; segundo, o aparelho mental é dividido em sistemas e subsistemas diferenciados quanto a sua função e modos de funcionamento; terceiro, esse funcionamento é dinâmico, pois existem forças que circulam e estão em conflito permanente. Esses três princípios serão melhor compreendidos no decorrer de nossa exposição.
           Segundo Heimann “Freud comparou o funcionamento da mente, o mais complicado órgão, com o funcionamento do mais simples organismo, a ameba. A vida é mantida através da admissão num organismo da matéria estranha, mas útil, e da descarga da sua própria, mas perniciosa matéria. Admissão e descarga são os mais fundamentais processos de qualquer organismo vivo. A mente, que também faz parte de um organismo vivo, não constitui exceção a essa regra: realiza a adaptação e o progresso mediante o emprego, ao longo de toda sua existência, dos processos fundamentais de projeção e introjeção. As experiências de introduzir alguma coisa no Eu e de expelir alguma coisa do Eu são eventos psíquicos de primeira grandeza”. (HEIMANN, 1969, p. 143)
        Do ponto de vista da teoria freudiana, os processos mentais são regulados pelo princípio de prazer.  O objetivo do aparelho neuronial é liberar as tensões acumuladas por estimulos internos (endógenos) e externos (exógenos). Freud relaciona o prazer e o desprazer à quantidade de excitação existente neste  aparelho. Corresponde ao prazer a diminuição da quantidade de excitação e ao desprazer o aumento dessa quantidade.  “O que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio de prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o inicio” (FREUD, 1969, p.94) 
               As forças que circulam no aparelho neuronial Freud denominou de pulsão. A pulsão refere-se a um estado de tensão que busca, através de um objeto, a supressão deste estado.  A matéria prima dos processos mentais, a pulsão, é o conceito limite entre o psíquico e o somático, é um representante psíquico das excitações do corpo e que se elevaram até a mente.  A sexualidade, a fome e a agressividade são pulsões. Esse processo que desencadeia a satisfação do organismo é um processo somático localizado num órgão ou numa parte de corpo e cuja excitação é representada na vida psíquica pela pulsão. Por exemplo, a excitação sexual, que é uma tensão física, tem um representante psíquico, a excitação psíquica representada pela pulsão sexual. A excitação é o grau de pressão ou de trabalho imposto à mente em conseqüência da sua ligação com o corporal. Todas as tensões do aparelho neuronial, causadas pelos estímulos internos ou externos, devem ser descarregados pela força motora. Fazer sexo, comer, agredir, dançar, beber, fumar são formas de aliviar as tensões do aparelho neuronial.
       Essa forma de  funcionamento do aparelho mental tem  um enorme papel na fundação do Eu,  como a instância que surge para   discernir o mundo interior (subjetivo) do mundo exterior (objetivo).  Contudo, para Freud o Eu não é apenas essa consciência segura, firme que nos permite discernir nossa interioridade, nossos sentimentos e pensamentos  da realidade que nos cerca, o mundo exterior.  Há  algo de profundo, subterrâneo e irracional na noção de Eu.  É o que veremos a seguir.
            Freud sempre foi contra a idéia de um eu lógico, fixo e estável. O Eu não é algo unitário, firme, seguro e autônomo, diferente de tudo mais. O que chamamos de nossa consciência é continuado para dentro, sem qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental inconsciente denominado “Id”, região dos impulsos, afetos e desejos. Essa nova instância descoberta pela psicanálise tornou questionável a própria noção do que entendemos por Eu. Para Freud, é como se o indivíduo existisse em duas dimensões: um lado consciente e outro inconsciente.
         “A psicanálise não vê na consciência a essência do psíquico, mas somente   uma qualidade do psíquico, que pode somar-se a outras ou faltar em absoluto (…). Ser consciente é, em primeiro lugar, um termo puramente descritivo que se baseia na percepção mais imediata e segura. A experiência nos mostra logo que um elemento psíquico (por exemplo, uma percepção não é, em geral, duradouramente consciente. Pelo contrário, a consciência é um estado eminentemente transitório”. (FREUD, 1948, p. 1191)
          Toda psicanálise se esforça como a tentativa de compreender o desenvolvimento do Eu em sua luta pela existência.  O recém nascido é incapaz de distinguir o seu Eu do mundo externo, não há o sentimento da realidade como a fonte das sensações. O primeiro momento em que o Eu percebe o mundo externo é através do desprazer, quando uma fonte de prazer lhe é subtraída. No recém-nascido é retirado o seio da mãe. Assim, a criança chora até que o tenha novamente. O seio é o primeiro objeto que separa o Eu do mundo externo.
            “A criança de peito começaria por tentar encontrar, numa modalidade  alucinatória, uma possibilidade de descarregar de forma imediata à tensão pulsional… ‘só a carência persistente da satisfação esperada, a decepção, acarretou o abandono desta tentativa de satisfação. No seu lugar, o aparelho psíquico teve de decidir–se a representar as condições reais do mundo exterior e a procurar nelas uma modificação real. Assim foi introduzido um novo princípio de atividade psíquica: já não representava o que era agradável, mas o que era real, mesmo que devesse ser desagradável’. O princípio de realidade, princípio regulador do funcionamento mental, aparece secundariamente como uma modificação do princípio de prazer, que começa por ser o único soberano; a sua instauração corresponde a toda uma série de adaptações que o aparelho psíquico tem de sofrer: desenvolvimento das funções conscientes, atenção, juízo, memória…”. (LAPLANCHE, 1983, p.471)
               O outro fator importante que força o Eu a se separar dos estímulos da realidade é a luta constante do Eu com o desprazer. O Eu se atomiza, tem a tendência de isolar de si tudo o que pode tornar-se fonte de desprazer. Dessa forma, surge um puro Eu que busca o prazer e evita a dor, mas  que sofre com o conflito com o mundo ameaçador.     Foi através do conflito do homem com a realidade que o Eu foi se diferenciando do mundo exterior. O indivíduo internalizou o princípio de realidade que irá estruturar todas as suas faculdades superiores. É através deste princípio que surgem os processos conscientes, como juízo, atenção e a memória.
          Através da exposição acima chegamos aos dois princípios que regem o funcionamento mental: o princípio de prazer responsável pelos processos inconcientes e o principio de realidade responsável pelos processos conscientes.
          Os processos mentais descritos por Freud  são regulados, num primeiro momento, pelo princípio de prazer. A busca do prazer é uma luta pelo escoamento livre das quantidades de excitação, causado pelo impacto da realidade externa sob o organismo. O alívio de estímulos seria a completa gratificação da excitação. Contudo, através do conflito do homem com o mundo externo, surge um outro princípio que deve reger o funcionamento mental: o princípio de realidade. Esse princípio aparece secundariamente como uma modificação do princípio de prazer, tornando-se a pedra angular dos processos mentais, em particular, dos processos conscientes.
            Foi através do princípio de realidade, no seu confronto com o princípio de prazer, que o organismo teve que construir defesas que o protegessem dos desprazeres causado pelo mundo externo. O indivíduo teve de se proteger das sensações que os objetos causam no seu interior. Com isso, o embate do Eu com o mundo externo gerou o princípio de realidade.
           “Grande parte daquilo que não se quer abandonar por seu caráter prazeroso não pertence ao Eu, mas sim aos objetos; reciprocamente, muitos sofrimentos que o Eu pretende desembaraçar-se resultam ser inseparáveis do Eu, de procedência interna. Contudo, o homem aprende a dominar um procedimento que, mediante a orientação intencionada dos sentidos e da atividade muscular adequada, lhe permite discernir o interior (pertencendo ao Eu) do exterior (originado pelo mundo), dando assim o primeiro passo na entronização do princípio de realidade”. (FREUD, 1974a, 3019)  
            A substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade tem seu acontecimento nas principais estruturas do aparelho neuronial. Na concepção de Freud, a estrutura da mente é tripartida: é designada como id(Isso), ego (Eue super-ego (Sobre eu). A primeira camada a se desenvolver foi o id: domínio do inconsciente e das pulsões primárias. O id é o domínio privilegiado do princípio de prazer. Ele é independente das formas e determinações que constituem o indivíduo. Ele ignora o certo e o errado, o bem e o mal, esforça-se unicamente pela satisfação da pulsão. Na medida em que busca a satisfação a qualquer custo, o id não visa a auto-preservação. 
           No decorrer da evolução da espécie humana, uma parte do id, responsável pela recepção e proteção contra os estímulos, desenvolve-se até formar o ego. O ego desenvolve se sob a influência do mundo externo, é o domínio do princípio de realidade. Ele é o mediador entre o id e o mundo externo. O id luta cegamente pela satisfação das pulsões, desprezando a realidade. Com isso, o ego coordena, altera, organiza e controla os desejos do id, reconciliando-o com a realidade.  O objetivo do ego é o de preservar a existência, observando e testando a realidade, criando para si mesmo uma imagem verdadeira da realidade. O ego representa o mundo externo para o id, protegendo-o das forças hostis.  O ego é responsável, portanto, pela substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade.
             “O ego se esforça por transmitir a influência do mundo exterior ao id e aspira a substituir o princípio de prazer, que reina sem restrições, pelo principio de realidade. A percepção é para o ego o que para o id é a pulsão. O ego representa o que nós podemos chamar de  razão ou  reflexão, opostamente ao id, que contem as paixões.” (FREUD, 1948, p. 1196)
           A finalidade do ego é o de proteger o id contra as forças do mundo externo. Para assumir essa função de proteção no desenvolvimento do ego, uma outra camada se desenvolve, o super-ego. Ele tem origem na infância com as primeiras restrições que o pai impõe ao filho e que são responsáveis pelos valores éticos e estéticos do indivíduo, por aquilo que ele entende como o bom, o mal, o belo, o feio, o útil e o prejudicial. O super-ego surge através da influência parental, mas somente se solidifica através das influências sociais e culturais, tornando-se o responsável pela extrema moralidade da sociedade civilizada.
         Essa diferenciação entre o sentimento do Ego e o mundo externo serve à finalidade prática de nos capacitar para a defesa contra sensações de desprazer que sentimos ou que nos ameaçam. O princípio de realidade surgiu como um mecanismo de defesa e de proteção contra os estímulos do mundo externo.  
           O Ego, através da introdução do princípio de realidade, ganhou consciência dos perigos, do certo e do errado, do bem e do mal, aprendeu a viver conforme a realidade que é hostil e carente de recursos. O que constituía um único universo para o Ego, passa a se tornar um mundo próprio. Ele separa de si mesmo um universo só seu, onde possa se proteger. Com isso, o Ego surgi limitado em suas dimensões.   O Ego foi entendido por Freud como um sentimento muito mais amplo que podemos ter de nós mesmos e da nossa relação com o mundo exterior. O nosso sentimento do Ego não passa, portanto, “de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais incluso, na verdade totalmente mais abrangente -, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o Ego e o mundo que os cerca… O conteúdo ideal a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e de um vínculo com o universo”. (FREUD, 1969, p.85-6) 
Bibliografia 
FREUD, SEl yo y el ello. Madri,  Biblioteca Nueva, 1948.
 FREUD, SO mal estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago,
Edições Standard, Tomo  XXI ,1969.
 FREUD, S. “El Malestar en la cultura. Madri, Ed. Standard, Obras completas, Tomo VIII, Madri,  1974.
 HEIMANN, P. Certas funções de introjeção  e da projeção no inicio da infância. In. Os progressos da psicanálise. Org. Joan  Riviere, Zahar: 1969
LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.   Vocabulário da psicanálise.     São Paulo, Martins Fontes, 1983.

Felicidade: em busca da tranquilidade da alma.



A filosofia foi em toda história o meio de se viver melhor, de sofrer menos, de enfrentar as adversidades da vida com maior serenidade. Ao contrário do que muitos pensam, a filosofia não é apenas uma disciplina teórica para se pensar bem,  mas é, antes de tudo, um ensinamento prático de como se viver melhor. Os grandes pensadores podem nos ensinar a viver bem, pois eles pensaram profundamente o problema da felicidade, assim como os motivos ocultos das ações humanas e a relação do homem consigo mesmo. Os Gregos já diziam que é necessário pensar bem para se viver melhor. Eles entendiam que existia uma íntima relação entre filosofia e medicina. O grego Epicuro (341-270 a.C) considerava o discurso filosófico um Pharmacon, um remédio capaz de curar as dores da alma. Para ele,  a filosofia era antes de tudo uma atividade prática que ultrapassava a dimensão passiva e contemplativa do saber. Era uma atividade que, pelos discursos e raciocínios, nos leva à vida feliz.   Tal como Epicuro, Platão também considerava que a  saúde da alma se daria por meio do discurso  filosófico, entendido como um Pharmacon  – remédio, droga, veneno, cosmético. Quando o discurso filosófico fosse administrada a fim de levar ao conhecimento e ao equilíbrio seria um  remédio; quando mal administrado, seria um  veneno.  Segundo a professora da USP, Olgária Matos,  “o pharmakon filosófico é o discurso terapêutico que busca a autarquia da alma e do corpo, o domínio da dor do corpo e da alma pela filosofia”.
       A filosofia entendida como pharmacon pode nos ensinar a enfrentar os problemas da vida,  como superar o fim de uma relação amorosa, como agir diante de um problema emocional ou como superar a dor de uma perda. Nossa vida é regida por ações e atos que se somam. Cada dia é feito de mil e uma ações, cada gesto sustenta alvos mais longínquos e mais essenciais a nossa felicidade. Cabe a filosofia, portanto,  nos ajudar a fazer uso dos meios que convém para atingir nossos objetivos.
Epicuro nasceu em 341 a.C na Ilha de Samos. Sua escola ficava em um jardim – Kespos – cheio de árvores frutíferas, onde seus discípulos mantinham longas conversas sobre os mais diversos assuntos. Foi ali que ele descobriu os quatro remédios da alma.  Seus quatro “Pharmakom” eram: não há o que temer dos deuses; não há nada a temer quanto à morte; pode-se suportar à dor; pode-se alcançar à felicidade. São duas palavras que definem felicidade para Epicuro: Ataraxia  e Hedoné  A felicidade consiste na ausência de preocupações (ataraxia) e no prazer (hedoné).  Não é a posse de riquezas ou a obtenção de cargos ou poder que pode nos tornar feliz, o que nos torna é a ausência de dores, a moderação nos afetos e a disposição de espírito para se manter nos limites impostos pela natureza.  Quando sentimos uma grande dor, tomamos um remédio, a imediata desaparição da dor produz insuperável alegria. Para Epicuro a alegria é a essência do bem.   Se na maior parte de nossas vidas não tivermos dores ou doenças e nem desgostos pode-se dizer que fomos felizes.  Uma vida sem preocupações e sem perturbação é o desejo de todo homem, seja ele  rico ou pobre.
             Para Epicuro a plena  felicidade só se pode alcançar pelo prazer. O prazer é o princípio e fim da vida feliz. Não há nada que não se resolva com um pouco de prazer. Com um pouco de prazer esquecemos até mesmo a dor. É por isso que para curar as dores do corpo nada melhor que os prazeres da alma, assim como, para curar as dores da alma nada melhor que os prazeres do corpo.  
       Apesar do prazer ser o princípio e fim da vida feliz,  Epicuro  afirma nem todos os prazeres conduzem a felicidade. Há prazeres que causam dor, mas também há dores que geram um prazer maior.  Por exemplo, fumar um cigarro é prazeroso para quem fuma, mas pode causar grandes dores como problemas respiratórios ou um câncer. Ter que estudar ou trabalhar num final de semana é um desprazer, mas passar no vestibular ou ganhar um bom dinheiro dá um grande prazer. Os prazeres são relativos, por isso devemos saber diferenciar o bom prazer do mau prazer.  Sempre que escolhemos um prazer, devemos nos perguntar, que me sucederá se se cumpre o que quer o meu desejo? Que acontecerá se não se cumpre? Para saber escolher bem os prazeres é necessário ter a virtude da prudência. É graças à prudência que o “sóbrio raciocínio” aprende a selecionar os prazeres que não trazem dores ou aqueles que trazem dor, mas que, posteriormente, proporcionam um prazer maior.  Epicuro nos ensina que o conhecimento seguro dos desejos nos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz.
         Os estóicos, escola oposta ao epicurismo,  também foram grandes pensadores da felicidade humana. Segundo eles, o mundo é um todo ordenado e harmonioso, há uma razão ordenadora (Logos) em todo o universo.  Dessa forma, a felicidade consiste em aceitar a lei universal do cosmo, o logos universal.  O homem é feliz quando aceita o que o destino lhe impõe sem reclamar e sem se perturbar. A ética estóica afirma que o homem feliz é o homem virtuoso, pois sabe moderar seus desejos, controlar suas paixões e orientar sua vontade. Ele deve ser capaz de educar seu caráter dominando racionalmente seus apetites, orientando sua ação para o bem e para a felicidade.   Não são os bens materiais, o dinheiro ou a diversão que trazem a felicidade, mas ter moderação, serenidade, equilíbrio e calma na vida.  O maior exemplo de homem virtuoso é do próprio fundador do estoicismo Zenão de Cítio. Ao perder todo o seu patrimônio em um naufrágio ele disse ao saber do ocorrido, “O destino queria que eu filosofasse mais desembaraçadamente”.
           O nome da escola de Zenão deriva da palavra grega stoa, pórtico.  Ele ensinava filosofia em um pórtico construído pelos atenienses para celebrar a vitória na guerra contra os Persas. Três palavras descrevem o estoicismo: materialismo, monismo e mutação. No universo tudo é material, mesmo o tempo e o pensamento (materialismo). Tudo que existe possui um princípio unificador (monismo). Tudo está em permanente mudança podendo se transformar em algo diferente do que se é (mutação) Através desses três princípios Zenão construiu sua doutrina.   Seu principal ensinamento era afirmar que o ser humano só pode alcançar a plena felicidade se abandonar todos os bens materiais e paixões terrenas, pois eles são os culpados de todo aborrecimento e desassossegos aqui na terra. O homem deve viver em ataraxia, ou seja, sem perturbação da alma que resulta de uma sabedoria atingida pela moderação.
            Outro grande filósofo estóico foi Sêneca (4-65 d.C).  Foi conselheiro do Imperador Nero e tentou orientá-lo para uma política humanista e moral. Contudo, em 65 d.C foi acusado de ter participado de uma conspiração para matá-lo. Sem qualquer julgamento foi obrigado a cometer suicídio.  Aceitou com serenidade a morte com o mesmo ânimo calmo com que filosofava. Dizem que sua morte foi lenta e cruel. Abriu as veias do braço, mas o sangue correu muito lentamente. Com isso, cortou as veias das pernas. Nada adiantou. Tomou então uma dose de veneno.  Enquanto esperava o veneno fazer efeito ditou um texto a um de seus discípulos.   Como o veneno não surtiu efeito, tomou banho para aumentar o sangramento. Assim morreu lentamente.
            Para Sêneca, o destino é inexorável. O homem pode apenas aceitá-lo ou rejeitá-lo. Se o aceitar de livre vontade pode ser feliz. Contudo muitos homens desperdiçam seu tempo com bebidas, mulheres, diversões fugazes e quando se dão conta a vida já passou.  A vida, se bem empregada, é suficientemente longa. Por isso, Sêneca pregava a superação das paixões e dos desejos. Ele lamentava que muitos homens desperdiçassem seu tempo com coisas inúteis. “A insaciável ganância domina um, outro, desperdiça sua energia em trabalhos supérfluos, um encharca-se de vinho, outro fica entorpecido pela inércia, um está sempre preocupado com a opinião alheia, outro, por um irreprimido desejo de comerciar, é levado a explorar terras e mares na esperança de obter lucro. (…) há aqueles que, voluntariamente, se sujeitam à ingrata adulação dos superiores. Também há os que se ocupam invejando o destino alheio e desprezando o seu próprio”. (Sêneca, 2007, p.27). Todos esses comportamentos, segundo Sêneca, geram apenas desgostos e sofrimento.  É comum no dia-a-dia depararmo-nos com pessoas que todo mês gastam seu dinheiro no shopping, ou gastam com jogos, bebidas ou mulheres numa eterna compulsão. São pessoas infelizes que procuram aliviar suas tensões e sofrimentos em algum vício. Os vícios sufocam os homens deixando-os embriagados e obscurecem a verdade. Eles tornam-se incapazes de voltar-se para si mesmo.  Seus espíritos estão de tal modo presos as paixões que são incapazes de achar a tranqüilidade e tudo que conquistam torna-se pesado. As paixões pelo dinheiro, pela fama e por mulheres apenas demonstram o espetáculo patético do sofrimento humano “As riquezas são pesadas para muitos! A preocupação com a eloqüência e a necessidade de mostrar talento tirou o sangue de muitos! Outros enfraqueceram devido a uma vida de libertinagem!” (Sêneca, 2007, p.28).  Dessa forma, Sêneca nos incita a superar os afetos como a cobiça, a ira, à vontade, os desejos e conquistar a paz e a tranqüilidade.  
            Em seu livro “Da tranqüilidade da alma” Sêneca também ensina-nos como devemos agir na infelicidade.    Para ele todos nós estamos ligados a sorte. Para uns a escravidão é suave e leve, já para outros é pesada e sofrível.  Mas nada disso importa. O que importa é que todos nós somos eternos prisioneiros. Aqueles que exploram o próximo, também serão explorados. Aqueles que causam dor, também sentirão dor. Uns estão presos ao dinheiro, outros a pobreza, uns aos bajuladores, outros a fama e outros ao poder. Toda vida é uma escravidão. Ninguém está salvo e não adianta reclamar. É preciso não deixar as oportunidades que a vida oferece escapar.  Mesmo que o sofrimento seja descomunal, sempre a vida oferece algum consolo. Sêneca nos ensina que devemos superar as dificuldades apelando à razão. Através da razão podemos abrandar o que era pesado, alargar o que era apertado, e os fardos tornar-se-ão mais leves sobre os ombros que saberão suportá-los.
Marco Aurélio (121-180 d.C.), imperador de Roma, também foi considerado um dos maiores filósofos estóicos da antiguidade.  Apesar de ser o homem mais poderoso do mundo em sua época, ele era simples, humilde e absolutamente sincero consigo mesmo.  Era bondoso e amável. O problema central de sua  filosofia não  era descobrir a verdade sobre os fatos ou sobre os princípios últimos e primeiros da existência, mas descobrir o melhor caminho para se conduzir a vida e viver bem. Em seu diário pessoal, denominado “Para si mesmo” e que foi parafraseada pela tradição com o nome “Meditações”, Marco Aurélio escrevia suas secretas conversas íntimas consigo mesmo. Cortesia, serenidade, piedade, generosidade, simplicidade na vida, bondade, humanidade são princípios estóicos citado em suas “Meditações” que mais tarde tornaram-se a base da ética cristã.  Ser comedido nos desejos, saber cuidar das próprias necessidades, cuidar da própria vida e não dar ouvidos à fofocas  eram partes de seus ensinamentos.  Ser feliz para ele é viver conforme a natureza e viver conforme a natureza é viver conforme a razão e a virtude. A razão e a virtude são os caminhos para a felicidade, pois são  os  “mais elevados bens”.  A vida natural é a vida controlada pela razão.  Pela razão devemos aprender que algumas coisas estão sobre o nosso poder e outras não, ou seja, devemos nos ocupar apenas daquilo que efetivamente está sobre o nosso controle. Se estivermos na praia e estiver chovendo, não adianta reclamar. Revoltar-se contra os fatos não altera os fatos. Se estiver  chuvoso assista um filme, faça um churrasco ou tome uma cerveja com os amigos. Aceitar a vida tal como ela é, com seus percalços e dificuldades, é fundamental para sermos felizes. Não podemos pedir que a vida seja como nós queremos, mas devemos aceitá-la como é.  Dessa forma, Marco Aurélio via na Prudência, piedade, temperança, generosidade e na força moral os produtos e ingredientes da felicidade.
Bibliografia
Matos, Olgária. Filosofia: A polifonia da Razão. In: Filosofia e Educação. Ed. Scipione, 2003
Marco Aurélio.  Meditações. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.
Sêneca. Da tranquilidade da alma. São paulo:  L&PM Pocket. 2009.
Sêneca. Sobre a brevidade da vida. São Paulo: L&PM Pocket. 2007.

A teoria da alma em Platão


                                                                                                                              
Platão (428-348 a.C.) foi discípulo de Sócrates e escreveu trinta diálogos considerados autênticos. Hoje conhecemos a figura de Sócrates graças aos seus diálogos, que faziam dele seu personagem principal. Platão fundou a primeira escola conhecida no mundo ocidental na cidade de Atenas em 387 a.C, chamada Academia, em homenagem ao seu amigo Academus. Seu verdadeiro nome era Aristocles, mas foi apelidado de Platão devido aos seus ombros largos.   Era um homem rico e fazia parte da aristocracia que governava a Grécia.  Seu pai, Aristão, tinha o rei Codros como seu antepassado e sua mãe, Perictione, foi parente de Sólon.    
            O pensamento de Platão  foi muito influenciado pelas filosofias de Heráclito e Parmênides. Ele procurou reconciliar ambas as posições. Foi da controvérsia dessas duas filosofias que surgiu a “teoria das idéias”, núcleo central de sua filosofia. O problema que Platão propõe a resolver é o conflito “irreconciliável” entre a teoria da mudança em Heráclito e Parmênides.  Para Heráclito no universo não há nada acabado, fixo e estável, tudo está em permanente mudança. Sua metafísica identifica o Ser com o Não-Ser. Se o mundo é devir, vir-a-ser,  não existe um Ser fixo, estável,  ele está sempre se transformando, é sempre impermanente.   Já para Parmênides as coisas que existem tem múltiplas características, são pequenas, grandes, coloridas, pesadas, leves, são diferentes, como homem, animal, água, fogo, etc. Se usarmos a intuição e o raciocínio, ou Noûs (pensamento) como ele chamava, perceberemos que há uma propriedade fixa em todas as coisas: elas “são”. Para Parmênides, o ser é uma propriedade de todas as coisas. Tudo que existe tem “Ser”. O Ser  é fixo, eterno, imutável, infinito. Dessa forma, as mudanças e transformações que ocorrem na natureza são uma ilusão de nossa percepção, pois algo que é não pode deixar de ser, e algo que não é não pode vir-a-ser, portanto, não há mudança.
           Para reconciliar ambas as teorias, Platão mostrou-nos que todos nós estamos sempre em contato com duas realidades: uma inteligível e outra sensível. A primeira é permanente, universal, nunca se modifica, é o mundo das idéias. A segunda é o mundo que percebemos por nossos sentidos, mutável e contingente, o mundo sensível.  Platão demonstra que o mundo tem uma forma apriori, uma estrutura inteligível.  “Através dos diálogos, Platão vai caracterizando essas causas inteligíveis dos objetos físicos que ele chama de idéias ou formas. Elas seriam incorpóreas e invisíveis – o que significa dizer justamente que não está na matéria a razão de sua inteligibilidade. Seriam reais, eternas e sempre idênticas a si mesmo, escapando a corrosão do tempo, que torna perecíveis os objetos físicos. Merecem por isso mesmo, o qualificativo de ‘divinas’ (…). Perfeitas e imutáveis, as idéias constituiriam os modelos ou paradigmas dos quais as coisas materiais seriam apenas cópias imperfeitas e transitórias. Seriam, pois, tipos ideais, a transcender o plano mutável dos objetos físicos.” (Pessanha, 1987, XVI-II).  
         A teoria das idéias de Platão está diretamente ligada a sua teoria da alma.   Na parte IV do seu livro “República” Platão concebe o homem como corpo e alma. Enquanto o corpo modifica-se e envelhece, a alma é imutável, eterna e divina. A alma inteligente preso ao corpo um dia foi livre e contemplou o mundo das idéias, mas as esqueceu. É somente através da busca do conhecimento, através de um processo de recordação, de reminiscência o homem pode lembrar-se das idéias que um dia contemplou.   A realidade sem forma, sem cor, impalpável só pode ser contemplada pela inteligência, que é o guia da alma.
Platão divide a alma em três partes. O lado racional está localizado na cabeça, seu objetivo é controlar os dois outros lados, com ele adquirimos a sabedoria e a prudência. O lado irascível está localizado no coração, seu objetivo é fazer prevalecer os sentimentos e a impetuosidade, com ele adquirimos a coragem. Por último, temos o lado concupiscente que está localizado no baixo-ventre, seu objetivo é satisfazer os desejos e apetites sexuais, com ele adquirimos a moderação ou a temperança.  No Mito do Cocheiro, no diálogo “Fedro”, Platão compara a alma a uma carruagem puxada por dois cavalos, um branco (irascível) e um negro (concupiscível). O corpo humano é a carruagem, e o cocheiro (Razão) conduz através das rédeas (pensamentos) os cavalos (sentimentos).  Cabe ao homem através de seus pensamentos saber conduzir seus sentimentos, pois somente assim ele poderá se guiar no caminho do bem e da verdade. 
           Platão afirma que não podemos ser felizes quando somos dominados pela concupiscência e pela cólera, isso porque as paixões sempre nos conduzem por caminhos perigosos e contraditórios e fazem com que os desejos e impulsos violentos de nosso corpo tirem nosso bom senso.  Já dizia Sócrates que todo vicio é ignorância. Não há nada mais deprimente do que uma pessoa que age por impulsos e é dominada pelas paixões. Ter autocontrole é essencial para sermos felizes. A felicidade só pode ser alcançada se formos capazes de dominar nossos sentimentos pela razão. A moderação é uma virtude e ela se realiza quando somos capazes de controlar a nossa concupiscência. O indivíduo moderado é aquele que não cede as suas paixões, impulsos e prazeres. Da mesma forma o indivíduo não se lançara a luta e a agressão indiscriminadamente, uma vez que a razão deve saber discernir o que é bom e mal para nossa vida, sabendo dominar a nossa alma irascível. Dessa forma, seremos felizes se através da razão soubermos controlar nossa vida, pois a virtude natural da razão é o conhecimento.  

Transtorno Bipolar


No final do século XIX e começo do século XX Freud diagnosticou que toda sociedade era neurótica, hoje em pleno século XXI diagnosticamos que o transtorno bipolar tornou-se a condição existencial do homem contemporâneo.   A neurose é uma patologia da mente que geralmente persiste em intensificar um fragmento da realidade.  É uma idéia exagerada que se mantém na mente determinando o modo de ser e viver do indivíduo. Em outras palavras, é uma reação exagerada que ocorre no aparelho neuronial em relação a uma experiência vivida.   O ciúme exagerado, a ansiedade extrema diante de uma situação, o medo exagerado de alguma coisa, a limpeza exagerada, o sentimento de perseguição são formas de comportamentos neuróticos.  Os neuróticos são pessoas, mais assustadas, mais tensas, mais ansiosas que as outras.      
       Freud diagnosticou em sua época  que a neurose é a condição existencial do homem moderno. Em sua opinião,  o comportamento neurótico do homem moderno surge do conflito irreconciliável entre as exigências da satisfação pulsional e as exigências repressivas da civilização. O homem é um ser do desejo, das paixões, da sexualidade. Contudo, a realidade é hostil aos seus impulsos e desejos. O homem tem que trabalhar para poder viver.  A sociedade não tem meios suficientes para sustentar a vida de seus membros.  Dessa forma, as energias da atividade sexual devem ser canalizadas para o trabalho.  Todos os bens culturais têm origem na sublimação das pulsões, em particular das pulsões sexuais. Com isso, a civilização mobiliza todas suas forças para reprimir a sexualidade. O resultado disso são as neuroses. Para Freud toda sociedade é neurótica  devido à insatisfação de impulsos primordiais, insatisfação exigida num grau muito superior que o necessário.            
        Hoje em pleno século XXI  a situação melhorou bastante, não precisamos mais sacrificar nossa sexualidade em nome do trabalho e do progresso da civilização.  O trabalho produtivo tem se automatizado, vivemos na era do desemprego estrutural. Além disso, os valores da sociedade tornaram-se mais flexíveis, diferentemente da época de Freud, onde a sociedade era mais rígida e patriarcal.  Vivemos numa época onde o sexo não é mais pecaminoso. O homossexualismo não é mais um crime. Há prostitutas em todas as sociedades. O individuo de hoje tem uma sexualidade mais plena, mais madura e equilibrada.  Dessa forma, a neurose não surge mais dos impulsos sexuais reprimidos. As doenças psíquicas de nossa época se modificaram, uma vez que os problemas que afligem o indivíduo são outros.    
         Hoje na era da globalização, vivemos numa sociedade do consumo, de prazeres ilimitados, onde o indivíduo pode ter tudo o que quiser. Não há mais valores pré-estabelecidos. Deus não é mais o centro das relações sociais. A moral não é mais o fundamento da existência individual e coletiva. A instituição familiar se fragmentou. Vivemos numa sociedade dinâmica e relativista. Não há mais barreiras morais, religiosas, familiares para o indivíduo se satisfazer e realizar suas potencialidades. O homem de hoje ganhou a liberdade da escolha. Essa liberdade da escolha gerou a angustia no ser humano.   
       Para o filósofo francês Jean Paul Sartre a angústia nasce da escolha. O homem é um ser da liberdade. É aquele que deseja e escolhe o que deseja.  O homem contemporâneo sofre de idéias antitéticas. Ele não sabe o que quer e o que deseja. Ele sofre porque não sabe o que escolher. Seus sentimentos são ambivalentes. Isso quer dizer que ora ele quer uma coisa, ora ele quer outra. Ora ele quer ser solteiro, ora ele quer ser casado. Ora ele quer morar na cidade, ora ele quer morar no campo. Ora ele quer estudar computação, ora ele quer ser filósofo.  Ora ele quer ser católico, ora ele quer ser budista. Ora ele acredita em Deus, ora ele nega Deus. O indivíduo moderno vive entre a mania e a depressão por não saber escolher. Ele assume compromissos que não pode cumprir. Ele faz escolhas que não deseja.  As idéias antagônicas passam a fazer parte de seu dia-a-dia. Seu pensamento torna-se bipolar.   
       Do nosso ponto de vista, há uma relação causal entre idéias antagônicas  e o transtorno bipolar. A fragmentação da mente em desejos opostos e idéias antitéticas pode causar  estados de mania ou de depressão devido às escolhas que o indivíduo faz. A indecisão, a dúvida, as  escolhas mal feitas, os compromissos não compridos ou indesejáveis geram angústia, que por fim, desenvolvem estados de ansiedade e excitação ou estados desânimo e depressão, características do transtorno bipolar. Certas escolhas ou desejos perturbam o humor e a atividade do sujeito, gerando grande ansiedade e  elevação da energia ou rebaixamento do humor ou da atividade  e energia. Não queremos dizer com isso que o transtorno bipolar não seja uma doença bioquímica, mas apenas que há uma relação causal entre idéias antitéticas, típica do homem contemporâneo e o transtorno bipolar. De alguma forma as idéias antagônicas produzem uma desordem bioquímica, causando o transtorno. Isso também ocorre com o uso de drogas. As drogas causam uma desordem no aparelho neuronial e, conseqüentemente,  também produzem o transtorno bipolar.  
      O transtorno bipolar é uma doença típica do mundo contemporâneo.  Esse transtorno se caracteriza por uma perturbação do humor e da atividade do sujeito. Ora há uma elevação do humor e aumento da energia e da atividade (mania), ora há um rebaixamento do humor e de redução de energia e da atividade (depressão).    No estado de mania o indivíduo sente um bem estar, um aumento da sociabilidade, do desejo de falar, da familiaridade e do desejo sexual.  Neste estado o indivíduo fica eufórico, fala muito, faz várias atividades ao mesmo tempo, às vezes faz muitas compras e sente-se onipotente.  Contudo, a euforia pode dar lugar à irritação, a explosões de raiva, a atitudes pretensiosas ou comportamentos grosseiros. No estado de depressão o indivíduo sente-se prostrado, sem forças, com baixo auto-estima, perde o interesse pela vida e tem sentimentos de suicídio.     
        O homem contemporâneo  apresenta todas essas características do transtorno bipolar. Ele vive entre a mania e a depressão.  Quando está eufórico ele apresenta uma alegria contagiante, é cheio de planos, tem elevada auto-estima, tem delírios de grandeza, faz muitas compras, gasta muito dinheiro e tem muita atividade sexual. As vezes  também apresenta grande vigor físico, fala muito e sente-se onipotente. Em alguns casos este estado de euforia torna-se irritabilidade, agressividade, arrogância e pretensão.  Quando está com depressão, o homem contemporâneo apresenta um estado de desânimo, baixa auto-estima, sentimentos de inferioridade, perda de interesse, angústia existencial e tédio.  Esse quadro mostra-nos que o transtorno de humor tornou-se a condição existencial do homem contemporâneo.

O nascimento e a morte do sujeito moderno


Por Michel Aires de Souza

problema da sujeito não é um velho problema do pensamento filosófico ocidental. Este problema tem sua origem no mundo moderno.   Os antigos Gregos  criaram uma extensa gama de conhecimentos científicos, como também os grandes fundamentos do pensamento filosófico e do pensamento político, contudo  nunca pensaram o problema do sujeito.   Os Gregos estavam mais interessados em especular sobre os problemas da natureza (physis)  O que eles  buscavam era uma explicação racional e sistemática do universo. É através do estudo da origem e movimento da vida natural que os primeiros filósofos criaram uma extensa gama de conhecimentos científicos, como a física, a matemática, a astronomia e a lógica,  dando origem ao pensamento ocidental.  
      Se a preocupação dos antigos era desvendar a origem e as transformações da natureza, o grande problema da filosofia moderna ocidental era indagar sobre o conhecimento. O colapso da ordem social, econômica e cultural medieval possibilitaram ao homem moderno o  interesse pelo conhecimento.  O valores como racionalismo,  humanismo e  antropocentrismo tornaram-se  essenciais para libertá-lo das amarras da ordem feudal e da Igreja. A partir desses valores ele aprendeu inquirir, investigar e decifrar sua própria realidade.  O homem  colocou-se a si próprio como centro dos interesses e decisões de sua própria vida.  Com o avanço do pensamento e das ciências, ele  passa a se interessar pelo modo como conhecemos o mundo. Ele  se afasta de metas transcendentes, deixando de se preocupar com outro mundo e passa a se preocupar com esta vida, com este mundo. O indivíduo  ganha consciência de sua subjetividade essencial.  Entre a realidade  e o conhecimento está o sujeito. Este  passa a ser o motivo de suas preocupações.   
        Os gregos conceberam o conhecimento da realidade como desvelamento. A verdade é aquilo que se desvela. Conhecer é contemplar a vida como ela é, deixando-a  falar por si mesma.  Já para a filosofia moderna  o conhecimento da realidade dá-se como representação.  O conhecimento só é possível como relação entre o sujeito que conhece (ser cognoscente) e o objeto (ser cognoscível). O sujeito projeta seus modos ou estruturas perceptivas no objeto para captar suas características e propriedades. É dessa relação cognitiva  que surge o conhecimento. Por esta razão, a noção de sujeito torna-se fundamental na investigação do conhecimento da realidade. 
          No século XVII, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) vai ser o primeiro a colocar  a pergunta “O que sou?”. Sua resposta: “uma coisa que pensa”.  A certeza do cogito inaugura a noção de sujeito moderno. A subjetividade torna-se o fundamento do sujeito do conhecimento.  Em seu livro “Discurso do método”, ao duvidar de todo conhecimento  que o precedeu, Descartes procurou a verdade no grande livro do mundo. Seu ponto de partida era a busca de um axioma que pudesse servir de fundamento a todo conhecimento, uma  verdade primeira indubitável.  A partir da dúvida  Descartes chega a uma verdade certa e segura,o eu penso:  “cogito ergo sum”. Se duvido, eu penso; se penso, eu existo. O eu cartesiano é puro pensamento (res cogitans). O pensamento é o lugar da verdade, é o puro intelecto, pois é por meio dele que adquirimos as idéias claras e distintas. É esse puro intelecto que se torna o núcleo do sujeito  moderno.
         O filósofo Emannuel kant (1724-1804) também contribui para a construção da noção de sujeito no mundo moderno. Para indagar sobre a natureza de nossos conhecimento ele colocou a razão num tribunal para poder julgar o que podemos conhecer e o que não podemos conhecer, traçando os limites de nosso pensamento. Com isso descobriu que a consciência só lida com fenômenos.     O real não é algo externo ao indivíduo, mas este o produz no interior de si mesmo. Somos nós que através de certas faculdades apriori (estabelecidos independentes da experiência) organizamos e damos sentido e coerência ao real.  O conhecimento surge como representação.  A razão seria  essa capacidade que o ser humano tem, partindo de princípios apriori, representar e conhecer o mundo. Em consequência disso, na teoria kantiana a razão torna-se o núcleo do sujeito moderno.
            Outro filósofo importante na construção do sujeito  moderno foi o filósofo das Luzes  Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). A diferença em relação a Descartes e Kant  é que  ele  não coloca a razão como o núcleo do sujeito, uma vez que a reflexão surge tardiamente no homem. No seu texto  “Discurso sobre a desigualdade entre os homens” Rousseau afirma que o homem em estado de natureza é desprovido de razão e reflexão, sendo que estas faculdades são típicas do estado de sociedade. A reflexão e a razão surgem no ser humano a partir de uma característica distintiva no ser humano, que é sua perfectibilidade, isto é, sua faculdade de se aperfeiçoar. É essa capacidade distintiva e quase ilimitada de desenvolver suas potencialidade que tirou o homem do estado de natureza e o tornou um ser sociável. Se a reflexão surge tardiamente no homem,  então  existiria   uma única virtude natural no ser humano em seu estado de natureza: o sentimento moral de piedade, entendida como uma “repugnância inata de ver sofrer seu semelhante”. Decorre daí para Rousseau  a ideia de bom selvagem. Foi através da piedade que surgiram todos os sentimentos sociais  como a generosidade, a clemência, a benquerença e a comiseração. O sujeito é antes de tudo um ser do sentimento e não da razão. Dessa forma o sentimento moral relaciona-se com a noção de sujeito no pensamento de Rousseau.
          É a partir do mundo moderno que o sujeito ganha certas capacidades humanas fixas e um sentimento estável de seu próprio eu.  Ele ganha consciência que é  uma identidade racional, moral e psicológica. Ele torna-se um ser soberano, autônomo,  fixo, estável,  compreendendo que é um ser que pensa,  sente, reflete  e age e  interage com o mundo objetivo. É a partir da modernidade que ele ganha consciência de sua vida interior como transparente a si mesmo, como ator de suas idéias e de seus atos. Esse contato do homem consigo mesmo só foi possível graças aos movimentos modernos, como renascimento,  protestantismo e  iluminismo,  que libertaram a consciência individual das instituições religiosas medievais.
        Mas esta noção de um sujeito fixo, estável, soberano não durou muito. Com o avanço do progresso do pensamento e do desenvolvimento técnico e científico,  noções como verdade, justiça, razão, bem, mal, virtude, Deus, foram relativizados.  O progresso do conhecimento colocou em dúvida e levou à perda de consistência dos valores absolutos da modernidade.  Em conseqüência disso, o sujeito racional e autônomo  foi problematizado, uma vez que se colocava como uma entidade metafísica dada apriori, como algo absoluto.  
           O primeiro pensador que começou a descontruir a noção de  sujeito foi Karl Marx (1818-1883) no decorrer do século XIX.  Na concepção do materialismo-histórico, o sujeito é determinado  por aquilo que ele faz,  é determinado pelo seu ser social.  “A forma como os indivíduos manifestam a sua vida, reflete muito exatamente aquilo que são. O que são coincide, portanto, com a sua produção, isto é, tanto com aquilo que produzem como a forma como produzem. Aquilo que os  indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção” (Marx, 1976, p.19).  É o comportamento material do homem que fomenta suas representações e pensamento. Marx nos ensinou que, se examinarmos a maneira pelas quais os homens produzem os bens necessários à vida, é possível compreender as formas de seu pensamento, tais como sua moral, religião e filosofia. O pensamento, como núcleo da sujeito,  torna-se o reflexo do desenvolvimento material objetivo da história. .
           Tal como Marx,  Friedrich Nietzsche (1844-1900) desconstruiu a noção de sujeito moderno.  Ele  se opõe à ideia de  origem do sujeito e passa a compreender este através de uma genealogia, que o concebe emergindo através de relações de poder, através de um turbilhão de forças que o atinge. O sujeito se constitui no terreno dos acontecimentos históricos, das contradições, das relações de força e poder. O conceito de genealogia concebe o sujeito enquanto ser no mundo, onde o corpo se torna visível e um efeito dos embates de forças. Dessa forma,   o próprio conceito de “eu” fixo e estável perde sentido, pois o homem é uma espécie cujas qualidades não estão fixadas.
         Após Nietzsche,  Sigmund Freud (1856-1939) deu um duro golpe no narcisismo da humanidade. Ele procurou mostrar que o ser humano é dominado por impulsos cegos e irracionais inconcientes. Não somos seres autônomos e racionais donos de si mesmo. O Eu (Ego) “não é senhor em sua própria casa”, o sujeito não é um ser da consciência, mas sim da inconsciência,  não é um ser da razão, mas sim é governado por um querer cego e irracional, destituído de sentido e finalidade.  
         Outro filósofo importante que desconstruiu a noção de sujeito iluminista  foi Michel Foucault (1926-1984). Ele dedicou toda sua vida a criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos. Ele retoma a genealogia nietzschiana dedicando-se a estudar a história das instituições disciplinares que surgiram na modernidade e pensa a constituição do sujeito a partir de formas de discursos e de relações de poder.  Foucault percebeu em suas pesquisas empíricas que  a partir do século XVII, através do inquérito, ou seja, de certas formas de análise de problemas jurídicos, judiciários e penais, surgem conhecimentos como a sociologia, a psicopatologia, a criminologia e a psicanálise.  Através dessas práticas regulares de controle, que se modificaram através da história, definiram-se tipos de subjetividade, individualidade e técnicas de esquadrinhamento disciplinar, que tornaram o corpo do indivíduo útil à produtividade. Isso significa que o sujeito moderno dócil, serviçal, trabalhador e responsável se constitui através de práticas disciplinares em instituições de controle  como o hospital, a prisão, a fábrica  e a escola
             Os membros da escola de frankfurt também detectaram à dissolução do indvíduo autônomo do iluminismo. A partir da segunda metade do século dezenove a humanidade passou a experenciar o advento da técnica  e da sociedade de massas.    Adorno e Horkheimer em seu clássico livro “Dialética do Esclarecimento” mostra-nos de forma  contundente as consequências do advento da técnica.  Neste livro  eles argumentam que  razão do iluminismo não se realizou enquanto força histórica, mas  tornou-se um mito, uma abstração. Ela transformou-se em um simples instrumento formal, técnico e operacional, que pode ser usado para todos os fins. Foi através da razão que a humanidade em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano sucumbiu a um estado de barbárie e regressão social. A razão formal tornou racionalidade instrumental, ou seja,   tornou-se relação calculada entre meios e fins.   Com o advento dessa  racionalidade  os indivíduos se adaptaram à sociedade e ao domínio social de forma espontânea. A produção, distribuição de mercadorias, o trabalho e os entretenimentos da sociedade capitalista invadiram à subjetividade do indivíduo autônomo. A racionalidade instrumental atingiu todos os setores da vida social, tornando os controles tecnológicos a própria personificação da razão. Eliminou com isso qualquer tentativa de ruptura. O aparato produtivo e as mercadorias se impuseram  ao sistema social como um todo. Os consumidores, prisioneiros do capital, prenderam-se agradavelmente aos produtos e às formas de bem estar social. Dessa forma, o indivíduo autônomo desapareceu. A subjetividade foi tomada pelos controles tecnológicos.
             Nota-se que a ideía de um sujeito acabado, pronto, estável, como se fosse uma identidade metafísica deixa de existir.  Essa é a grande descoberta daqueles que desconstruiram a noção de sujeito no mundo moderno. O que se pode inferir, portanto,  é que, se o sujeito não é nada, então ele é,  como sugeriu Locke,  uma tabula rasa, é uma folha em branco, cujas impressões do mundo vão formando o núcleo da subjetividade.  Em consequencia disso, só podemos entender o sujeito  em sua relação com a história, através das circunstâncias que o constitui.  O sujeito torna-se o que se é historicamente,  no interior das praticas sociais. 
Bibliografia
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de janeiro: Jorge Zarhar, 1985.
DESCARTES, R. DescartesRMeditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
FREUD, SO mal estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago,Edições Standard, Tomo  XXI ,1969.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Roberto  Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1989
KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril cultural, 1983 (Os Pensadores).
MARX, K. e ENGELS,F. A ideologia Alemã. São Paulo, Hucitec,1984.
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César Souza. São Paulo,  Brasiliense, 1988.

O Conceito de “Esclarecimento” Segundo Kant

O Conceito de “Esclarecimento” Segundo Kant  Immanuel Kant escreve um artigo tentando responder a pergunta “O que é  esclarecimento ?”...