sexta-feira, 29 de junho de 2012

O conceito de “Eu” em Freud


A noção de “Eu” em Freud só pode ser entendida a partir de sua teoria do funcionamento mental.  Mas antes de explicarmos esse  funcionamento  temos que entender os  três postulados que o determinam. Primeiramente,  há certas quantidades de energia não muito bem especificadas que alimentam os processos psíquicos; segundo, o aparelho mental é dividido em sistemas e subsistemas diferenciados quanto a sua função e modos de funcionamento; terceiro, esse funcionamento é dinâmico, pois existem forças que circulam e estão em conflito permanente. Esses três princípios serão melhor compreendidos no decorrer de nossa exposição.
           Segundo Heimann “Freud comparou o funcionamento da mente, o mais complicado órgão, com o funcionamento do mais simples organismo, a ameba. A vida é mantida através da admissão num organismo da matéria estranha, mas útil, e da descarga da sua própria, mas perniciosa matéria. Admissão e descarga são os mais fundamentais processos de qualquer organismo vivo. A mente, que também faz parte de um organismo vivo, não constitui exceção a essa regra: realiza a adaptação e o progresso mediante o emprego, ao longo de toda sua existência, dos processos fundamentais de projeção e introjeção. As experiências de introduzir alguma coisa no Eu e de expelir alguma coisa do Eu são eventos psíquicos de primeira grandeza”. (HEIMANN, 1969, p. 143)
        Do ponto de vista da teoria freudiana, os processos mentais são regulados pelo princípio de prazer.  O objetivo do aparelho neuronial é liberar as tensões acumuladas por estimulos internos (endógenos) e externos (exógenos). Freud relaciona o prazer e o desprazer à quantidade de excitação existente neste  aparelho. Corresponde ao prazer a diminuição da quantidade de excitação e ao desprazer o aumento dessa quantidade.  “O que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio de prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o inicio” (FREUD, 1969, p.94) 
               As forças que circulam no aparelho neuronial Freud denominou de pulsão. A pulsão refere-se a um estado de tensão que busca, através de um objeto, a supressão deste estado.  A matéria prima dos processos mentais, a pulsão, é o conceito limite entre o psíquico e o somático, é um representante psíquico das excitações do corpo e que se elevaram até a mente.  A sexualidade, a fome e a agressividade são pulsões. Esse processo que desencadeia a satisfação do organismo é um processo somático localizado num órgão ou numa parte de corpo e cuja excitação é representada na vida psíquica pela pulsão. Por exemplo, a excitação sexual, que é uma tensão física, tem um representante psíquico, a excitação psíquica representada pela pulsão sexual. A excitação é o grau de pressão ou de trabalho imposto à mente em conseqüência da sua ligação com o corporal. Todas as tensões do aparelho neuronial, causadas pelos estímulos internos ou externos, devem ser descarregados pela força motora. Fazer sexo, comer, agredir, dançar, beber, fumar são formas de aliviar as tensões do aparelho neuronial.
       Essa forma de  funcionamento do aparelho mental tem  um enorme papel na fundação do Eu,  como a instância que surge para   discernir o mundo interior (subjetivo) do mundo exterior (objetivo).  Contudo, para Freud o Eu não é apenas essa consciência segura, firme que nos permite discernir nossa interioridade, nossos sentimentos e pensamentos  da realidade que nos cerca, o mundo exterior.  Há  algo de profundo, subterrâneo e irracional na noção de Eu.  É o que veremos a seguir.
            Freud sempre foi contra a idéia de um eu lógico, fixo e estável. O Eu não é algo unitário, firme, seguro e autônomo, diferente de tudo mais. O que chamamos de nossa consciência é continuado para dentro, sem qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental inconsciente denominado “Id”, região dos impulsos, afetos e desejos. Essa nova instância descoberta pela psicanálise tornou questionável a própria noção do que entendemos por Eu. Para Freud, é como se o indivíduo existisse em duas dimensões: um lado consciente e outro inconsciente.
         “A psicanálise não vê na consciência a essência do psíquico, mas somente   uma qualidade do psíquico, que pode somar-se a outras ou faltar em absoluto (…). Ser consciente é, em primeiro lugar, um termo puramente descritivo que se baseia na percepção mais imediata e segura. A experiência nos mostra logo que um elemento psíquico (por exemplo, uma percepção não é, em geral, duradouramente consciente. Pelo contrário, a consciência é um estado eminentemente transitório”. (FREUD, 1948, p. 1191)
          Toda psicanálise se esforça como a tentativa de compreender o desenvolvimento do Eu em sua luta pela existência.  O recém nascido é incapaz de distinguir o seu Eu do mundo externo, não há o sentimento da realidade como a fonte das sensações. O primeiro momento em que o Eu percebe o mundo externo é através do desprazer, quando uma fonte de prazer lhe é subtraída. No recém-nascido é retirado o seio da mãe. Assim, a criança chora até que o tenha novamente. O seio é o primeiro objeto que separa o Eu do mundo externo.
            “A criança de peito começaria por tentar encontrar, numa modalidade  alucinatória, uma possibilidade de descarregar de forma imediata à tensão pulsional… ‘só a carência persistente da satisfação esperada, a decepção, acarretou o abandono desta tentativa de satisfação. No seu lugar, o aparelho psíquico teve de decidir–se a representar as condições reais do mundo exterior e a procurar nelas uma modificação real. Assim foi introduzido um novo princípio de atividade psíquica: já não representava o que era agradável, mas o que era real, mesmo que devesse ser desagradável’. O princípio de realidade, princípio regulador do funcionamento mental, aparece secundariamente como uma modificação do princípio de prazer, que começa por ser o único soberano; a sua instauração corresponde a toda uma série de adaptações que o aparelho psíquico tem de sofrer: desenvolvimento das funções conscientes, atenção, juízo, memória…”. (LAPLANCHE, 1983, p.471)
               O outro fator importante que força o Eu a se separar dos estímulos da realidade é a luta constante do Eu com o desprazer. O Eu se atomiza, tem a tendência de isolar de si tudo o que pode tornar-se fonte de desprazer. Dessa forma, surge um puro Eu que busca o prazer e evita a dor, mas  que sofre com o conflito com o mundo ameaçador.     Foi através do conflito do homem com a realidade que o Eu foi se diferenciando do mundo exterior. O indivíduo internalizou o princípio de realidade que irá estruturar todas as suas faculdades superiores. É através deste princípio que surgem os processos conscientes, como juízo, atenção e a memória.
          Através da exposição acima chegamos aos dois princípios que regem o funcionamento mental: o princípio de prazer responsável pelos processos inconcientes e o principio de realidade responsável pelos processos conscientes.
          Os processos mentais descritos por Freud  são regulados, num primeiro momento, pelo princípio de prazer. A busca do prazer é uma luta pelo escoamento livre das quantidades de excitação, causado pelo impacto da realidade externa sob o organismo. O alívio de estímulos seria a completa gratificação da excitação. Contudo, através do conflito do homem com o mundo externo, surge um outro princípio que deve reger o funcionamento mental: o princípio de realidade. Esse princípio aparece secundariamente como uma modificação do princípio de prazer, tornando-se a pedra angular dos processos mentais, em particular, dos processos conscientes.
            Foi através do princípio de realidade, no seu confronto com o princípio de prazer, que o organismo teve que construir defesas que o protegessem dos desprazeres causado pelo mundo externo. O indivíduo teve de se proteger das sensações que os objetos causam no seu interior. Com isso, o embate do Eu com o mundo externo gerou o princípio de realidade.
           “Grande parte daquilo que não se quer abandonar por seu caráter prazeroso não pertence ao Eu, mas sim aos objetos; reciprocamente, muitos sofrimentos que o Eu pretende desembaraçar-se resultam ser inseparáveis do Eu, de procedência interna. Contudo, o homem aprende a dominar um procedimento que, mediante a orientação intencionada dos sentidos e da atividade muscular adequada, lhe permite discernir o interior (pertencendo ao Eu) do exterior (originado pelo mundo), dando assim o primeiro passo na entronização do princípio de realidade”. (FREUD, 1974a, 3019)  
            A substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade tem seu acontecimento nas principais estruturas do aparelho neuronial. Na concepção de Freud, a estrutura da mente é tripartida: é designada como id(Isso), ego (Eue super-ego (Sobre eu). A primeira camada a se desenvolver foi o id: domínio do inconsciente e das pulsões primárias. O id é o domínio privilegiado do princípio de prazer. Ele é independente das formas e determinações que constituem o indivíduo. Ele ignora o certo e o errado, o bem e o mal, esforça-se unicamente pela satisfação da pulsão. Na medida em que busca a satisfação a qualquer custo, o id não visa a auto-preservação. 
           No decorrer da evolução da espécie humana, uma parte do id, responsável pela recepção e proteção contra os estímulos, desenvolve-se até formar o ego. O ego desenvolve se sob a influência do mundo externo, é o domínio do princípio de realidade. Ele é o mediador entre o id e o mundo externo. O id luta cegamente pela satisfação das pulsões, desprezando a realidade. Com isso, o ego coordena, altera, organiza e controla os desejos do id, reconciliando-o com a realidade.  O objetivo do ego é o de preservar a existência, observando e testando a realidade, criando para si mesmo uma imagem verdadeira da realidade. O ego representa o mundo externo para o id, protegendo-o das forças hostis.  O ego é responsável, portanto, pela substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade.
             “O ego se esforça por transmitir a influência do mundo exterior ao id e aspira a substituir o princípio de prazer, que reina sem restrições, pelo principio de realidade. A percepção é para o ego o que para o id é a pulsão. O ego representa o que nós podemos chamar de  razão ou  reflexão, opostamente ao id, que contem as paixões.” (FREUD, 1948, p. 1196)
           A finalidade do ego é o de proteger o id contra as forças do mundo externo. Para assumir essa função de proteção no desenvolvimento do ego, uma outra camada se desenvolve, o super-ego. Ele tem origem na infância com as primeiras restrições que o pai impõe ao filho e que são responsáveis pelos valores éticos e estéticos do indivíduo, por aquilo que ele entende como o bom, o mal, o belo, o feio, o útil e o prejudicial. O super-ego surge através da influência parental, mas somente se solidifica através das influências sociais e culturais, tornando-se o responsável pela extrema moralidade da sociedade civilizada.
         Essa diferenciação entre o sentimento do Ego e o mundo externo serve à finalidade prática de nos capacitar para a defesa contra sensações de desprazer que sentimos ou que nos ameaçam. O princípio de realidade surgiu como um mecanismo de defesa e de proteção contra os estímulos do mundo externo.  
           O Ego, através da introdução do princípio de realidade, ganhou consciência dos perigos, do certo e do errado, do bem e do mal, aprendeu a viver conforme a realidade que é hostil e carente de recursos. O que constituía um único universo para o Ego, passa a se tornar um mundo próprio. Ele separa de si mesmo um universo só seu, onde possa se proteger. Com isso, o Ego surgi limitado em suas dimensões.   O Ego foi entendido por Freud como um sentimento muito mais amplo que podemos ter de nós mesmos e da nossa relação com o mundo exterior. O nosso sentimento do Ego não passa, portanto, “de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais incluso, na verdade totalmente mais abrangente -, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o Ego e o mundo que os cerca… O conteúdo ideal a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e de um vínculo com o universo”. (FREUD, 1969, p.85-6) 
Bibliografia 
FREUD, SEl yo y el ello. Madri,  Biblioteca Nueva, 1948.
 FREUD, SO mal estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago,
Edições Standard, Tomo  XXI ,1969.
 FREUD, S. “El Malestar en la cultura. Madri, Ed. Standard, Obras completas, Tomo VIII, Madri,  1974.
 HEIMANN, P. Certas funções de introjeção  e da projeção no inicio da infância. In. Os progressos da psicanálise. Org. Joan  Riviere, Zahar: 1969
LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.   Vocabulário da psicanálise.     São Paulo, Martins Fontes, 1983.

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