Por Michel Aires de Souza

Se a preocupação dos antigos era desvendar a origem e as transformações da natureza, o grande problema da filosofia moderna ocidental era indagar sobre o conhecimento. O colapso da ordem social, econômica e cultural medieval possibilitaram ao homem moderno o interesse pelo conhecimento. O valores como racionalismo, humanismo e antropocentrismo tornaram-se essenciais para libertá-lo das amarras da ordem feudal e da Igreja. A partir desses valores ele aprendeu inquirir, investigar e decifrar sua própria realidade. O homem colocou-se a si próprio como centro dos interesses e decisões de sua própria vida. Com o avanço do pensamento e das ciências, ele passa a se interessar pelo modo como conhecemos o mundo. Ele se afasta de metas transcendentes, deixando de se preocupar com outro mundo e passa a se preocupar com esta vida, com este mundo. O indivíduo ganha consciência de sua subjetividade essencial. Entre a realidade e o conhecimento está o sujeito. Este passa a ser o motivo de suas preocupações.
Os gregos conceberam o conhecimento da realidade como desvelamento. A verdade é aquilo que se desvela. Conhecer é contemplar a vida como ela é, deixando-a falar por si mesma. Já para a filosofia moderna o conhecimento da realidade dá-se como representação. O conhecimento só é possível como relação entre o sujeito que conhece (ser cognoscente) e o objeto (ser cognoscível). O sujeito projeta seus modos ou estruturas perceptivas no objeto para captar suas características e propriedades. É dessa relação cognitiva que surge o conhecimento. Por esta razão, a noção de sujeito torna-se fundamental na investigação do conhecimento da realidade.
No século XVII, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) vai ser o primeiro a colocar a pergunta “O que sou?”. Sua resposta: “uma coisa que pensa”. A certeza do cogito inaugura a noção de sujeito moderno. A subjetividade torna-se o fundamento do sujeito do conhecimento. Em seu livro “Discurso do método”, ao duvidar de todo conhecimento que o precedeu, Descartes procurou a verdade no grande livro do mundo. Seu ponto de partida era a busca de um axioma que pudesse servir de fundamento a todo conhecimento, uma verdade primeira indubitável. A partir da dúvida Descartes chega a uma verdade certa e segura,o eu penso: “cogito ergo sum”. Se duvido, eu penso; se penso, eu existo. O eu cartesiano é puro pensamento (res cogitans). O pensamento é o lugar da verdade, é o puro intelecto, pois é por meio dele que adquirimos as idéias claras e distintas. É esse puro intelecto que se torna o núcleo do sujeito moderno.
O filósofo Emannuel kant (1724-1804) também contribui para a construção da noção de sujeito no mundo moderno. Para indagar sobre a natureza de nossos conhecimento ele colocou a razão num tribunal para poder julgar o que podemos conhecer e o que não podemos conhecer, traçando os limites de nosso pensamento. Com isso descobriu que a consciência só lida com fenômenos. O real não é algo externo ao indivíduo, mas este o produz no interior de si mesmo. Somos nós que através de certas faculdades apriori (estabelecidos independentes da experiência) organizamos e damos sentido e coerência ao real. O conhecimento surge como representação. A razão seria essa capacidade que o ser humano tem, partindo de princípios apriori, representar e conhecer o mundo. Em consequência disso, na teoria kantiana a razão torna-se o núcleo do sujeito moderno.
Outro filósofo importante na construção do sujeito moderno foi o filósofo das Luzes Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). A diferença em relação a Descartes e Kant é que ele não coloca a razão como o núcleo do sujeito, uma vez que a reflexão surge tardiamente no homem. No seu texto “Discurso sobre a desigualdade entre os homens” Rousseau afirma que o homem em estado de natureza é desprovido de razão e reflexão, sendo que estas faculdades são típicas do estado de sociedade. A reflexão e a razão surgem no ser humano a partir de uma característica distintiva no ser humano, que é sua perfectibilidade, isto é, sua faculdade de se aperfeiçoar. É essa capacidade distintiva e quase ilimitada de desenvolver suas potencialidade que tirou o homem do estado de natureza e o tornou um ser sociável. Se a reflexão surge tardiamente no homem, então existiria uma única virtude natural no ser humano em seu estado de natureza: o sentimento moral de piedade, entendida como uma “repugnância inata de ver sofrer seu semelhante”. Decorre daí para Rousseau a ideia de bom selvagem. Foi através da piedade que surgiram todos os sentimentos sociais como a generosidade, a clemência, a benquerença e a comiseração. O sujeito é antes de tudo um ser do sentimento e não da razão. Dessa forma o sentimento moral relaciona-se com a noção de sujeito no pensamento de Rousseau.
É a partir do mundo moderno que o sujeito ganha certas capacidades humanas fixas e um sentimento estável de seu próprio eu. Ele ganha consciência que é uma identidade racional, moral e psicológica. Ele torna-se um ser soberano, autônomo, fixo, estável, compreendendo que é um ser que pensa, sente, reflete e age e interage com o mundo objetivo. É a partir da modernidade que ele ganha consciência de sua vida interior como transparente a si mesmo, como ator de suas idéias e de seus atos. Esse contato do homem consigo mesmo só foi possível graças aos movimentos modernos, como renascimento, protestantismo e iluminismo, que libertaram a consciência individual das instituições religiosas medievais.
Mas esta noção de um sujeito fixo, estável, soberano não durou muito. Com o avanço do progresso do pensamento e do desenvolvimento técnico e científico, noções como verdade, justiça, razão, bem, mal, virtude, Deus, foram relativizados. O progresso do conhecimento colocou em dúvida e levou à perda de consistência dos valores absolutos da modernidade. Em conseqüência disso, o sujeito racional e autônomo foi problematizado, uma vez que se colocava como uma entidade metafísica dada apriori, como algo absoluto.
O primeiro pensador que começou a descontruir a noção de sujeito foi Karl Marx (1818-1883) no decorrer do século XIX. Na concepção do materialismo-histórico, o sujeito é determinado por aquilo que ele faz, é determinado pelo seu ser social. “A forma como os indivíduos manifestam a sua vida, reflete muito exatamente aquilo que são. O que são coincide, portanto, com a sua produção, isto é, tanto com aquilo que produzem como a forma como produzem. Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção” (Marx, 1976, p.19). É o comportamento material do homem que fomenta suas representações e pensamento. Marx nos ensinou que, se examinarmos a maneira pelas quais os homens produzem os bens necessários à vida, é possível compreender as formas de seu pensamento, tais como sua moral, religião e filosofia. O pensamento, como núcleo da sujeito, torna-se o reflexo do desenvolvimento material objetivo da história. .
Tal como Marx, Friedrich Nietzsche (1844-1900) desconstruiu a noção de sujeito moderno. Ele se opõe à ideia de origem do sujeito e passa a compreender este através de uma genealogia, que o concebe emergindo através de relações de poder, através de um turbilhão de forças que o atinge. O sujeito se constitui no terreno dos acontecimentos históricos, das contradições, das relações de força e poder. O conceito de genealogia concebe o sujeito enquanto ser no mundo, onde o corpo se torna visível e um efeito dos embates de forças. Dessa forma, o próprio conceito de “eu” fixo e estável perde sentido, pois o homem é uma espécie cujas qualidades não estão fixadas.
Após Nietzsche, Sigmund Freud (1856-1939) deu um duro golpe no narcisismo da humanidade. Ele procurou mostrar que o ser humano é dominado por impulsos cegos e irracionais inconcientes. Não somos seres autônomos e racionais donos de si mesmo. O Eu (Ego) “não é senhor em sua própria casa”, o sujeito não é um ser da consciência, mas sim da inconsciência, não é um ser da razão, mas sim é governado por um querer cego e irracional, destituído de sentido e finalidade.
Outro filósofo importante que desconstruiu a noção de sujeito iluminista foi Michel Foucault (1926-1984). Ele dedicou toda sua vida a criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos. Ele retoma a genealogia nietzschiana dedicando-se a estudar a história das instituições disciplinares que surgiram na modernidade e pensa a constituição do sujeito a partir de formas de discursos e de relações de poder. Foucault percebeu em suas pesquisas empíricas que a partir do século XVII, através do inquérito, ou seja, de certas formas de análise de problemas jurídicos, judiciários e penais, surgem conhecimentos como a sociologia, a psicopatologia, a criminologia e a psicanálise. Através dessas práticas regulares de controle, que se modificaram através da história, definiram-se tipos de subjetividade, individualidade e técnicas de esquadrinhamento disciplinar, que tornaram o corpo do indivíduo útil à produtividade. Isso significa que o sujeito moderno dócil, serviçal, trabalhador e responsável se constitui através de práticas disciplinares em instituições de controle como o hospital, a prisão, a fábrica e a escola
Os membros da escola de frankfurt também detectaram à dissolução do indvíduo autônomo do iluminismo. A partir da segunda metade do século dezenove a humanidade passou a experenciar o advento da técnica e da sociedade de massas. Adorno e Horkheimer em seu clássico livro “Dialética do Esclarecimento” mostra-nos de forma contundente as consequências do advento da técnica. Neste livro eles argumentam que razão do iluminismo não se realizou enquanto força histórica, mas tornou-se um mito, uma abstração. Ela transformou-se em um simples instrumento formal, técnico e operacional, que pode ser usado para todos os fins. Foi através da razão que a humanidade em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano sucumbiu a um estado de barbárie e regressão social. A razão formal tornou racionalidade instrumental, ou seja, tornou-se relação calculada entre meios e fins. Com o advento dessa racionalidade os indivíduos se adaptaram à sociedade e ao domínio social de forma espontânea. A produção, distribuição de mercadorias, o trabalho e os entretenimentos da sociedade capitalista invadiram à subjetividade do indivíduo autônomo. A racionalidade instrumental atingiu todos os setores da vida social, tornando os controles tecnológicos a própria personificação da razão. Eliminou com isso qualquer tentativa de ruptura. O aparato produtivo e as mercadorias se impuseram ao sistema social como um todo. Os consumidores, prisioneiros do capital, prenderam-se agradavelmente aos produtos e às formas de bem estar social. Dessa forma, o indivíduo autônomo desapareceu. A subjetividade foi tomada pelos controles tecnológicos.
Nota-se que a ideía de um sujeito acabado, pronto, estável, como se fosse uma identidade metafísica deixa de existir. Essa é a grande descoberta daqueles que desconstruiram a noção de sujeito no mundo moderno. O que se pode inferir, portanto, é que, se o sujeito não é nada, então ele é, como sugeriu Locke, uma tabula rasa, é uma folha em branco, cujas impressões do mundo vão formando o núcleo da subjetividade. Em consequencia disso, só podemos entender o sujeito em sua relação com a história, através das circunstâncias que o constitui. O sujeito torna-se o que se é historicamente, no interior das praticas sociais.
Bibliografia
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de janeiro: Jorge Zarhar, 1985.
DESCARTES, R. Descartes, R. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
FREUD, S. O mal estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago,Edições Standard, Tomo XXI ,1969.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1989
KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril cultural, 1983 (Os Pensadores).
MARX, K. e ENGELS,F. A ideologia Alemã. São Paulo, Hucitec,1984.
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César Souza. São Paulo, Brasiliense, 1988.
Nenhum comentário:
Postar um comentário