sexta-feira, 29 de junho de 2012

O nascimento e a morte do sujeito moderno


Por Michel Aires de Souza

problema da sujeito não é um velho problema do pensamento filosófico ocidental. Este problema tem sua origem no mundo moderno.   Os antigos Gregos  criaram uma extensa gama de conhecimentos científicos, como também os grandes fundamentos do pensamento filosófico e do pensamento político, contudo  nunca pensaram o problema do sujeito.   Os Gregos estavam mais interessados em especular sobre os problemas da natureza (physis)  O que eles  buscavam era uma explicação racional e sistemática do universo. É através do estudo da origem e movimento da vida natural que os primeiros filósofos criaram uma extensa gama de conhecimentos científicos, como a física, a matemática, a astronomia e a lógica,  dando origem ao pensamento ocidental.  
      Se a preocupação dos antigos era desvendar a origem e as transformações da natureza, o grande problema da filosofia moderna ocidental era indagar sobre o conhecimento. O colapso da ordem social, econômica e cultural medieval possibilitaram ao homem moderno o  interesse pelo conhecimento.  O valores como racionalismo,  humanismo e  antropocentrismo tornaram-se  essenciais para libertá-lo das amarras da ordem feudal e da Igreja. A partir desses valores ele aprendeu inquirir, investigar e decifrar sua própria realidade.  O homem  colocou-se a si próprio como centro dos interesses e decisões de sua própria vida.  Com o avanço do pensamento e das ciências, ele  passa a se interessar pelo modo como conhecemos o mundo. Ele  se afasta de metas transcendentes, deixando de se preocupar com outro mundo e passa a se preocupar com esta vida, com este mundo. O indivíduo  ganha consciência de sua subjetividade essencial.  Entre a realidade  e o conhecimento está o sujeito. Este  passa a ser o motivo de suas preocupações.   
        Os gregos conceberam o conhecimento da realidade como desvelamento. A verdade é aquilo que se desvela. Conhecer é contemplar a vida como ela é, deixando-a  falar por si mesma.  Já para a filosofia moderna  o conhecimento da realidade dá-se como representação.  O conhecimento só é possível como relação entre o sujeito que conhece (ser cognoscente) e o objeto (ser cognoscível). O sujeito projeta seus modos ou estruturas perceptivas no objeto para captar suas características e propriedades. É dessa relação cognitiva  que surge o conhecimento. Por esta razão, a noção de sujeito torna-se fundamental na investigação do conhecimento da realidade. 
          No século XVII, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) vai ser o primeiro a colocar  a pergunta “O que sou?”. Sua resposta: “uma coisa que pensa”.  A certeza do cogito inaugura a noção de sujeito moderno. A subjetividade torna-se o fundamento do sujeito do conhecimento.  Em seu livro “Discurso do método”, ao duvidar de todo conhecimento  que o precedeu, Descartes procurou a verdade no grande livro do mundo. Seu ponto de partida era a busca de um axioma que pudesse servir de fundamento a todo conhecimento, uma  verdade primeira indubitável.  A partir da dúvida  Descartes chega a uma verdade certa e segura,o eu penso:  “cogito ergo sum”. Se duvido, eu penso; se penso, eu existo. O eu cartesiano é puro pensamento (res cogitans). O pensamento é o lugar da verdade, é o puro intelecto, pois é por meio dele que adquirimos as idéias claras e distintas. É esse puro intelecto que se torna o núcleo do sujeito  moderno.
         O filósofo Emannuel kant (1724-1804) também contribui para a construção da noção de sujeito no mundo moderno. Para indagar sobre a natureza de nossos conhecimento ele colocou a razão num tribunal para poder julgar o que podemos conhecer e o que não podemos conhecer, traçando os limites de nosso pensamento. Com isso descobriu que a consciência só lida com fenômenos.     O real não é algo externo ao indivíduo, mas este o produz no interior de si mesmo. Somos nós que através de certas faculdades apriori (estabelecidos independentes da experiência) organizamos e damos sentido e coerência ao real.  O conhecimento surge como representação.  A razão seria  essa capacidade que o ser humano tem, partindo de princípios apriori, representar e conhecer o mundo. Em consequência disso, na teoria kantiana a razão torna-se o núcleo do sujeito moderno.
            Outro filósofo importante na construção do sujeito  moderno foi o filósofo das Luzes  Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). A diferença em relação a Descartes e Kant  é que  ele  não coloca a razão como o núcleo do sujeito, uma vez que a reflexão surge tardiamente no homem. No seu texto  “Discurso sobre a desigualdade entre os homens” Rousseau afirma que o homem em estado de natureza é desprovido de razão e reflexão, sendo que estas faculdades são típicas do estado de sociedade. A reflexão e a razão surgem no ser humano a partir de uma característica distintiva no ser humano, que é sua perfectibilidade, isto é, sua faculdade de se aperfeiçoar. É essa capacidade distintiva e quase ilimitada de desenvolver suas potencialidade que tirou o homem do estado de natureza e o tornou um ser sociável. Se a reflexão surge tardiamente no homem,  então  existiria   uma única virtude natural no ser humano em seu estado de natureza: o sentimento moral de piedade, entendida como uma “repugnância inata de ver sofrer seu semelhante”. Decorre daí para Rousseau  a ideia de bom selvagem. Foi através da piedade que surgiram todos os sentimentos sociais  como a generosidade, a clemência, a benquerença e a comiseração. O sujeito é antes de tudo um ser do sentimento e não da razão. Dessa forma o sentimento moral relaciona-se com a noção de sujeito no pensamento de Rousseau.
          É a partir do mundo moderno que o sujeito ganha certas capacidades humanas fixas e um sentimento estável de seu próprio eu.  Ele ganha consciência que é  uma identidade racional, moral e psicológica. Ele torna-se um ser soberano, autônomo,  fixo, estável,  compreendendo que é um ser que pensa,  sente, reflete  e age e  interage com o mundo objetivo. É a partir da modernidade que ele ganha consciência de sua vida interior como transparente a si mesmo, como ator de suas idéias e de seus atos. Esse contato do homem consigo mesmo só foi possível graças aos movimentos modernos, como renascimento,  protestantismo e  iluminismo,  que libertaram a consciência individual das instituições religiosas medievais.
        Mas esta noção de um sujeito fixo, estável, soberano não durou muito. Com o avanço do progresso do pensamento e do desenvolvimento técnico e científico,  noções como verdade, justiça, razão, bem, mal, virtude, Deus, foram relativizados.  O progresso do conhecimento colocou em dúvida e levou à perda de consistência dos valores absolutos da modernidade.  Em conseqüência disso, o sujeito racional e autônomo  foi problematizado, uma vez que se colocava como uma entidade metafísica dada apriori, como algo absoluto.  
           O primeiro pensador que começou a descontruir a noção de  sujeito foi Karl Marx (1818-1883) no decorrer do século XIX.  Na concepção do materialismo-histórico, o sujeito é determinado  por aquilo que ele faz,  é determinado pelo seu ser social.  “A forma como os indivíduos manifestam a sua vida, reflete muito exatamente aquilo que são. O que são coincide, portanto, com a sua produção, isto é, tanto com aquilo que produzem como a forma como produzem. Aquilo que os  indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção” (Marx, 1976, p.19).  É o comportamento material do homem que fomenta suas representações e pensamento. Marx nos ensinou que, se examinarmos a maneira pelas quais os homens produzem os bens necessários à vida, é possível compreender as formas de seu pensamento, tais como sua moral, religião e filosofia. O pensamento, como núcleo da sujeito,  torna-se o reflexo do desenvolvimento material objetivo da história. .
           Tal como Marx,  Friedrich Nietzsche (1844-1900) desconstruiu a noção de sujeito moderno.  Ele  se opõe à ideia de  origem do sujeito e passa a compreender este através de uma genealogia, que o concebe emergindo através de relações de poder, através de um turbilhão de forças que o atinge. O sujeito se constitui no terreno dos acontecimentos históricos, das contradições, das relações de força e poder. O conceito de genealogia concebe o sujeito enquanto ser no mundo, onde o corpo se torna visível e um efeito dos embates de forças. Dessa forma,   o próprio conceito de “eu” fixo e estável perde sentido, pois o homem é uma espécie cujas qualidades não estão fixadas.
         Após Nietzsche,  Sigmund Freud (1856-1939) deu um duro golpe no narcisismo da humanidade. Ele procurou mostrar que o ser humano é dominado por impulsos cegos e irracionais inconcientes. Não somos seres autônomos e racionais donos de si mesmo. O Eu (Ego) “não é senhor em sua própria casa”, o sujeito não é um ser da consciência, mas sim da inconsciência,  não é um ser da razão, mas sim é governado por um querer cego e irracional, destituído de sentido e finalidade.  
         Outro filósofo importante que desconstruiu a noção de sujeito iluminista  foi Michel Foucault (1926-1984). Ele dedicou toda sua vida a criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos. Ele retoma a genealogia nietzschiana dedicando-se a estudar a história das instituições disciplinares que surgiram na modernidade e pensa a constituição do sujeito a partir de formas de discursos e de relações de poder.  Foucault percebeu em suas pesquisas empíricas que  a partir do século XVII, através do inquérito, ou seja, de certas formas de análise de problemas jurídicos, judiciários e penais, surgem conhecimentos como a sociologia, a psicopatologia, a criminologia e a psicanálise.  Através dessas práticas regulares de controle, que se modificaram através da história, definiram-se tipos de subjetividade, individualidade e técnicas de esquadrinhamento disciplinar, que tornaram o corpo do indivíduo útil à produtividade. Isso significa que o sujeito moderno dócil, serviçal, trabalhador e responsável se constitui através de práticas disciplinares em instituições de controle  como o hospital, a prisão, a fábrica  e a escola
             Os membros da escola de frankfurt também detectaram à dissolução do indvíduo autônomo do iluminismo. A partir da segunda metade do século dezenove a humanidade passou a experenciar o advento da técnica  e da sociedade de massas.    Adorno e Horkheimer em seu clássico livro “Dialética do Esclarecimento” mostra-nos de forma  contundente as consequências do advento da técnica.  Neste livro  eles argumentam que  razão do iluminismo não se realizou enquanto força histórica, mas  tornou-se um mito, uma abstração. Ela transformou-se em um simples instrumento formal, técnico e operacional, que pode ser usado para todos os fins. Foi através da razão que a humanidade em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano sucumbiu a um estado de barbárie e regressão social. A razão formal tornou racionalidade instrumental, ou seja,   tornou-se relação calculada entre meios e fins.   Com o advento dessa  racionalidade  os indivíduos se adaptaram à sociedade e ao domínio social de forma espontânea. A produção, distribuição de mercadorias, o trabalho e os entretenimentos da sociedade capitalista invadiram à subjetividade do indivíduo autônomo. A racionalidade instrumental atingiu todos os setores da vida social, tornando os controles tecnológicos a própria personificação da razão. Eliminou com isso qualquer tentativa de ruptura. O aparato produtivo e as mercadorias se impuseram  ao sistema social como um todo. Os consumidores, prisioneiros do capital, prenderam-se agradavelmente aos produtos e às formas de bem estar social. Dessa forma, o indivíduo autônomo desapareceu. A subjetividade foi tomada pelos controles tecnológicos.
             Nota-se que a ideía de um sujeito acabado, pronto, estável, como se fosse uma identidade metafísica deixa de existir.  Essa é a grande descoberta daqueles que desconstruiram a noção de sujeito no mundo moderno. O que se pode inferir, portanto,  é que, se o sujeito não é nada, então ele é,  como sugeriu Locke,  uma tabula rasa, é uma folha em branco, cujas impressões do mundo vão formando o núcleo da subjetividade.  Em consequencia disso, só podemos entender o sujeito  em sua relação com a história, através das circunstâncias que o constitui.  O sujeito torna-se o que se é historicamente,  no interior das praticas sociais. 
Bibliografia
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de janeiro: Jorge Zarhar, 1985.
DESCARTES, R. DescartesRMeditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
FREUD, SO mal estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago,Edições Standard, Tomo  XXI ,1969.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Roberto  Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1989
KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril cultural, 1983 (Os Pensadores).
MARX, K. e ENGELS,F. A ideologia Alemã. São Paulo, Hucitec,1984.
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César Souza. São Paulo,  Brasiliense, 1988.

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