quarta-feira, 2 de maio de 2012


Sobre a cegueira


Experiência estigmatizante, sensações de vida interrompida e anseio por voltar "ao estado anterior". Essas são as percepções daqueles que perderam tardiamente a visão. Refletir sobre o tema é entender como a sociedade lida com a diferença


Por: Fernanda Melo


Por que ninguém nunca pesquisou isso?". Para as pessoas comuns, o mundo está cheio de perguntas a serem respondidas. Mas quando essa mesma pessoa se envolve em uma pesquisa que é a base do fazer científico - é como se ela ficasse subitamente sem inspiração. Porque pesquisas não nascem do vazio ou de uma simples indagação: existem métodos, estatísticas, maneiras de abordar o problema; autores que já fizeram perguntas parecidas e dão respostas que norteiam futuras pesquisas. Se por um lado isso forma um conhecimento para o qual todo cientista pode e deve apelar, por outro funciona como uma maneira pré-determinada de olhar a realidade. Assim, o que seria uma pergunta espontânea se vê na necessidade de entrar em uma linha de pesquisa e uma tradição científica. Às vezes pode ser difícil olhar para uma realidade como se fosse a primeira vez e perguntar - por que ninguém nunca pesquisou isso?
Assim era o tema da a cegueira . Existem muitos trabalhos médicos que dizem o que causa a cegueira, os níveis de normalidade da visão, os tratamentos possíveis; a possibilidade de perder a visão aparece em programas de saúde pública ou segurança no trabalho, e há uma lei que obriga as empresas a terem pessoas com deficiência nos seus quadros incluindo pessoas com problemas de visão; existem trabalhos psicopedagógicos que falam das necessidades educativas dos que não podem usar a visão em sala de aula, ou de que maneiras os pais podem estimular os seus filhos que não podem contar com a visão. Basicamente é isso. Ou seja: sabemos muito sobre os aspectos médicos e psicopedagógicos de perder a visão, e reconhecemos a necessidade de empregar defi- cientes. Mas que impacto perder a visão tem na vida de alguém, que esferas da vida isso afeta e o que desejam as pessoas que perderam a visão pouco ou quase nada se sabia. O que faltava para conhecer a realidade dessas pessoas era algo muito simples: perguntar.
O meu livro Cegueira e Normatividade Social é o resultado dessa pergunta. Foram entrevistadas dez pessoas, que tinham em comum o fato de terem ficado cegas depois dos treze anos de idade. Como o objetivo era conhecer o que pensavam, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, que buscavam conhecer o antes, o durante e o depois do acontecimento de perder a visão. Eram pessoas que se tornaram cegas por motivos diferentes, assim como eram diferentes suas idades, classes sociais, histórias familiares e níveis de instrução. O que elas nos fizeram conhecer através de seus depoimentos foi algo surpreendente e óbvio ao mesmo tempo: o que a pessoa que perdeu a visão busca é viver. Elas querem comida, diversão e arte. Elas querem amor, querem cultura, querem emprego. A visão e a educação são apenas uma parte de suas vidas, é preciso oferecer muito mais.
A dificuldade em imaginar que pessoas que não veem são iguais as que veem têm e raízes profundas, na nossa própria maneira de entender o mundo. Não é difícil perceber que somos uma civilização visual da maneira de organizar uma sala de aula com todos os alunos olhando para o professor e o quadro negro, à sinalização das ruas e os padrões de beleza, tudo é muito visual. Norbert Elias  (2001), ao estudar a maneira como os costumes cortesãos influenciaram as normas de etiqueta que obedecemos atualmente, ressalta a importância gradativa que o ver teve sobre os outros sentidos. O cortesão e mais tarde o homem educado é aquele capaz de refrear seus sentidos em função de ser um mero expectador.
Ao invés da espontaneidade medieval, que tinha necessidade de tocar e sentir o cheiro do que entrava em contato, ser educado passou a ser conter-se. O poder sobre si mesmo, de refrear suas reações, de fazer gestos calculados e saber do que acontece sem precisar se envolver é uma capacidade que desenvolvemos ao longo dos séculos. Aquele que não pode participar desse jogo social como expectador e sim com o uso dos outros sentidos parte com uma grande desvantagem e desvalorização.
METÁFORAS DO OLHAR, ESTEREÓTIPOS DA CEGUEIRA
Mas não eram apenas as cortes que colocavam a visão como o sentido de maior excelência. De acordo com Marilena Chauí (1988), o olhar há muito tempo representa uma questão fundamental na filosofia, como metáfora do conhecimento. Seja o mundo que impressiona o olhar ou nosso olhar que busca avidamente as coisas do mundo; seja o olhar como um possuidor das coisas sem tocá-las; seja o olhar fonte segura ou enganado pelos sentidos é sempre através da sua visão que o homem se afasta de si mesmo e se abre para o mundo. Nos textos religiosos, o olhar se relaciona com espiritualidade. No Novo Testamento (Atos, cap. 9, vers 17-18), além dos milagres de Jesus, a cegueira aparece na conversão de Saulo, que deixa de ser um perseguidor de cristãos para se tornar Paulo, o apóstolo. Ao ser convertido, ele fica cego durante três dias. A cegueira, nesse caso, simbolizaria um período de limpeza espiritual, uma transição a um estágio superior. O livro (origem do filme com o mesmo nome) Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago (1995), relata o caos social causado por uma cegueira coletiva, que desaparece tão inexplicavelmente quanto seu surgimento. A perda da visão mostra o fim da própria civilidade, a perda de regras e de todos os laços que uniam as pessoas.
Não é difícil perceber que sobre a cegueira pesa um estereótipo forte de raízes profundas. Além de ser considerado um coitadinho, muitos projetam na cegueira uma ideia de sujeira, maldade e/ ou ignorância. Quando alguém sofre atribuições profundamente depreciativas, que determinam a maneira como as pessoas lidam com seu portador, dizemos que a pessoa tem um estigma, no termo de Erving Goffman  (1988). Aquele que possui um estigma que pode ser físico, moral ou de raça é compreendido pelos outros através do seu estigma, como se não possuísse qualidades que vão além dele. Outro agravante é que o estigma carrega sobre si preconceitos que ultrapassam muito a característica que o gerou.


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