terça-feira, 5 de junho de 2012

O SENTIDO DA FILOSOFIA NA ESCOLA: (NÃO) É O QUE NÃO PODE SER




Resumo: Qual o lugar da filosofia na escola? Qual a liberdade que a filosofia encontra na escola para poder ser o que quer? A escola sustenta-se em modelos, busca a padronização, o igual; já a filosofia procura aquilo que nem mesmo ela é para poder continuar sendo filosofia. A filosofia pode incomodar a estrutura de poder da escola e colaborar com a construção de um espaço mais humano, mas também estimular o seu inverso ao não enfrentar as relações de poder nesta instituição, preservando o que deveria ser eliminado. Em diversos textos -  “Educação após Auschwitz”, “Tabus a respeito do professor”, “Educação contra a barbárie”, entre outros - Adorno aponta a necessidade de a escola opor resistência à barbárie, que é o contrário da formação (Bildung). Assim, a escola deve servir à desbarbarização da humanidade, mas para isto deve libertar-se dos tabus. Que papel tem o professor de filosofia neste contexto? Sua postura frente ao conhecimento, as relações que estabelece com os alunos e com o conteúdo, marcam uma postura política e uma concepção de educação que podem afirmar ou negar a própria filosofia. Como fazer efetivamente filosofia na escola? Se a filosofia levasse a cabo discussões consideradas pedagógicas, o que aconteceria com a escola? Talvez a escola corresse o risco de implodir ou a filosofia desejasse sair da escola. Mas é possível que a filosofia tenha que ocupar este espaço para ser parte do que deseja ser. Para realizar esta reflexão partiremos de uma determinada concepção de filosofia. Procuraremos pensar este conceito com o auxílio de um outro - o de dialética negativa desenvolvido pelos frankfurtianos. A unidimensionalidade do homem na sociedade industrial, denunciada por Marcuse, invade todos os campos, inclusive o pensamento. Urge pensarmos o conceito de filosofia como comportando tensões; eis um modo de resistir à sua estandartização.
Palavras-chave: filosofia; escola; ensino; tabus; poder.

O que

(Arnaldo Antunes)
Que não é o que não pode ser que
Não é o que não pode
Ser que não é
O que não pode ser que não
É o que não
Pode ser
Que não
É
O que não pode ser que
Não é o que não pode ser
Que não é o que
O que?
O que?
O que?
Que não é o que não pode ser que não é
Inicio a minha reflexão com esta música dos Titãs, com letra de Arnaldo Antunes, para anunciar a direção que tomarei aqui. Pensar sobre qualquer tema em torno do ensino de filosofia implica necessariamente assumir uma postura frente ao próprio conceito de filosofia. Nada mais simples. Nada mais complexo. É assim que vejo a filosofia: como um campo de saber que precisa de sua própria negação para se afirmar, o que certamente nos leva sempre a várias outras negações. Filosofia é o que é e é o que não é, mas não buscamos a síntese neste movimento dialético que parece lhe ser inerente. Não buscamos tampouco a definição deste conceito – no máximo podemos tentar tateá-lo, contorná-lo, sob pena de fazer morrer o próprio objeto. Assim, emprestamos o conceito de dialética negativa presente nos filósofos frankfurtianos para vislumbrar um foco na imagem da filosofia que tentamos delinear. Interessa-nos a tensão que se exprime no conceito de filosofia: uma expressão que se nega para poder ser o que é, pois no momento em que parece adquirir uma forma, abandona-a pela simples potencialidade que carrega em si de já poder ser outra, diferente do que era e muito possivelmente do seu vir a ser – como uma massinha de modelar. Mas, a filosofia não quer modelar e nem moldar. Deste modo, negar a tensão presente na filosofia, desfazê-la na busca de sua superação, não seria praticar a absolutização do seu conceito e, por conseguinte, eliminar o potencial que ela encerra enquanto campo de saber capaz de oferecer experiências formativas, mesmo em uma sociedade administrada? Desfazer a tensão inerente ao conceito de filosofia não seria congelá-lo? Como resistir à estandartização na filosofia? Marcuse (1973) já denunciou que a unidimensionalidade do homem na sociedade industrial invade todos os campos, inclusive o pensamento. Por vezes nem a filosofia escapa deste movimento e, assim, corre o risco de privilegiar o momento adaptativo da formação em detrimento do momento de transcendência, a heteronomia em detrimento da autonomia, convertendo-se em semiformação. Afirma Theodor W. Adorno (1996, p. 390), em “Teoria da semicultura”: “A formação que se esquece disso, que descansa em si mesma e absolutiza-se, acaba por se converter em semiformação”. E continua:
Quando o campo de forças a que chamamos formação se congela em categorias fixas – sejam elas do espírito ou da natureza, de transcendência ou de acomodação – cada uma delas, isolada, coloca-se em contradição com seu sentido, fortalece a ideologia e promove uma formação regressiva. (ADORNO, 1996, p. 390)
Assim, parece-nos que para não congelarmos o potencial de formação que a filosofia carrega, é preciso compreendê-la como comportando tensões, que não se pretendem conciliáveis; é preciso que nos distanciemos de qualquer movimento de absolutização do seu próprio conceito.
Não é fácil a filosofia. Mas, por que deveria ser, se justamente a sua beleza maior reside na sua capacidade de enxergar o complexo? A filosofia está sempre revolvendo, agitando, fazendo uma espécie de upgrade. Neste sentido, fazer filosofia tem algo de muito desafiador tanto para o aluno quanto para o professor e é este fazer que queremos problematizar. Como é este fazer na escola? As indagações/provocações que se seguem terão sua origem e seu pano de fundo nesta questão.

PROBLEMATIZANDO

A escola é um local cheio de contradições. Esta instituição é dotada de grande inércia; é conservadora e tradicional, mesmo quando se pretende inovadora. Assim, se habitamos este espaço que promete o educar, o fazemos muitas vezes somente por contingência ou, melhor dizendo, o habitamos pelo que ele pode ser, mas que ainda não é. Refiro-me especialmente – embora não especificamente – ao professor de filosofia. Refiro-me ao professor que depois de ter trabalhado um ano em sala de aula com esta disciplina, ouve uma colega – a professora responsável pela mesma série no ano seguinte - dizendo: - “Estou tendo que ´pular miudinho´ com estes alunos. Tudo eles criticam. Para tudo eles têm um argumento”.
Ótimo, pensa este professor de filosofia. Afinal, não era isto mesmo o que queríamos? Esta é uma pergunta que incomoda, pois, ao mesmo tempo em que traz o tom afirmativo, podemos sentir nela um certo espanto e algum receio. Queremos que nossos alunos tenham uma experiência formativa de qualidade, mas o que será de nós, professores, e da escola se esta formação se efetivar?
Imaginemos uma aula de filosofia em que se discute a questão do conhecimento e a partir dela outros temas como, por exemplo, o aprender, o ensinar, as relações entre professores e alunos, a autoridade e a disciplina. Imaginemos que esta discussão caminhe no sentido de questionar o já dado, inclusive quanto às aulas de filosofia. Imaginemos que a tão famosa disposição dos alunos em círculo seja posta em questão. Sim, é verdade que o círculo promove condições melhores para uma aula de filosofia e sabemos bem dos argumentos que temos para utilizar esta configuração espacial. Mas, se ousarmos pensar de modo diferente sobre o já pensado, poderemos chegar à conclusão de que o círculo é perfeito para exercer o controle disciplinar. Por um lado, todos precisam ser vistos e ouvidos; por outro, parece que há uma imposição sutil do ter que – o aluno tem que falar, o aluno tem que escutar, o aluno tem que prestar atenção ao outro. Há aqui qualquer semelhança com o que Foucault escreveu sobre o panoptismo, não há? Entretanto, tudo é feito em nome da ética e do respeito ao trabalho coletivo. Eis a sutileza. Uma sutileza que não passou desapercebida por alunos que acabaram por levar a cabo o convite que a reflexão filosófica insiste em lhes fazer. Afinal, não era isto que queríamos? Não se trata de negar a idéia de círculo e muito menos de defender uma visão relativista a partir do que expomos. Apenas estamos propondo um exercício de imaginação para colocarmos em questão situações que merecem nossa atenção.
Do mesmo modo, costumamos defender o diálogo filosófico e desprezar a conversa nas aulas de filosofia. Mas, se pensarmos de outro modo, não poderíamos chegar à conclusão de que a conversação teria uma estrutura mais interessante para a filosofia, uma vez que é mais flexível do que o diálogo, que normalmente é carregado de normatizações ainda que implícitas? Novamente afirmo: não estou defendendo o relativismo e/ou a falta de rigor nas aulas de filosofia; apenas desejo traçar alguns exemplos de como poderíamos problematizar aquilo que muitas vezes é tomado como consenso.
Na mesma direção, nos perguntamos: devemos tratar “temas delicados”, tais como sexualidade, doença e morte? O que fazer? Ignorá-los? São temas sérios. Como trabalhar temáticas que desacomodam as relações na escola, na família e na vida, de modo geral, sem fazer discussões “pela metade”? No caso da sexualidade, por exemplo, precisaríamos de um programa específico para tal conteúdo. Entretanto, ainda que não elejamos temas desta espécie, outras temáticas desembocam muitas vezes nestes assuntos considerados mais problemáticos. Qual a interface que existe entre filosofia e psicologia? O que os pais, os alunos, os demais professores – enfim, a escola de um modo geral – esperam de nós? Nos anos noventa, ministrando a disciplina filosofia para crianças, abordei a temática do medo com as primeiras séries do ensino fundamental. A maior parte das crianças perdeu algum tipo de medo – em geral do escuro ou de cachorro. Mas uma mãe veio me consultar sobre minhas aulas porque a filha dela tinha uma doença de pele – vitiligo – que antes estava “controlada” e que naquele momento havia voltado, talvez em função das aulas de filosofia. Causa-nos preocupação situações como esta. Posteriormente a aluna voltou a equilibrar-se diante da doença e começou a se relacionar bem melhor com os colegas da classe.
A verdade é que não é possível fazer filosofia sem que ela abale as estruturas internas de uma pessoa e desacomode suas experiências existenciais. Para construir é preciso desconstruir, diz a filosofia. Mas, não deveria ser esta também a perspectiva da escola? Não deveria a escola buscar sentidos e desnudar conflitos, ao invés de camuflá-los?
O fato é que, em geral, a escola cria modelos destituídos de sentidos; já a filosofia quebra modelos em busca de sentidos. A escola está interessada em respostas; a filosofia quer perguntar. A escola busca o igual, a padronização; a filosofia o diferente. A escola quer a construção; a filosofia prefere desconstruir. Que tipo de convivência podemos esperar desta relação? Parece haver uma forte implicação decorrente da presença da filosofia na escola, a saber, o incômodo que esta disciplina gera para as demais e para a própria estrutura da escola. Queremos destacar, entretanto, que este incômodo surge também nas aulas de filosofia quando nos vemos circunscritos a uma instituição que não pode facilmente levar a filosofia a sério, sob pena de correr o risco de ver desmantelados os modelos que a sustentam e precisar ser outra, diferente do que era. Mas, não gostaríamos de habitar uma escola diferente?

UMA PEDRA NO MEIO DO CAMINHO. UM CAMINHO NO MEIO DA PEDRA.

Uma menininha de dois anos começa a freqüentar a escola. Como tantas outras, ainda não se adaptou. Por isto elas choram. Mas esta pequena faz diferente. Ela grita: “-Socorro! Socorro!”. Sim, sabemos bem que ela pede socorro porque ficará distante dos pais, mas quando me contaram esta história, pensei: “- Ela está certa em gritar por socorro. Se soubesse o quão pertinente é este grito, se soubesse quantas vezes sentirá vontade de pedir socorro em sua vida escolar, em sua permanência nesta instituição chamada escola...!”
A filosofia tem uma pedra no meio do caminho – a escola. Por outro lado, às vezes a filosofia é que aparece como uma pedra no caminho da escola. Mas, será possível encontrar um caminho no meio das pedras?
Quando iniciei minhas aulas de filosofia para crianças, decidi – juntamente com a direção – que não haveria nota nesta disciplina. O sistema do computador, entretanto, estava preparado para atribuir valores numéricos em todas as disciplinas. Depois de muito trabalho, chegou-se a uma solução – a de colocar asteriscos em filosofia no boletim do aluno. Qual não foi minha surpresa quando fui questionada por um grupo de alunos sobre as “estrelinhas” – expressão que usavam para denominar os asteriscos. Não sei por qual motivo, o número de asteriscos era arbitrário em cada boletim. Ouvia, então, o questionamento dos alunos: “Professora, por que ´tirei’ três estrelinhas e o fulano ´tirou’ cinco?” Isto ocorreu em todas as classes. Não é fácil buscar novos sentidos na escola.
Há ainda um outro fato interessante de ser comentado nesta mesma perspectiva: em minha aula eles podiam utilizar qualquer material que tivessem: canetinhas coloridas, caneta esferográfica, corretivo, etc. Não instituía qualquer proibição – apenas discutia com os alunos sobre o uso destes materiais. Era comum, por exemplo, que os alunos da primeira série usassem lápis (e não caneta), uma vez que se encontravam em fase de alfabetização e precisavam apagar muitas vezes o que haviam escrito. Mas, apenas destacava que o uso da caneta implicaria no uso do corretivo e que o lápis poderia ser facilmente apagado com borracha. Em função disto, muitos se decidiam pelo lápis; porém, outros insistiam no uso da caneta. O engraçado é que o ano passava e eles continuavam a me interrogar sobre a possibilidade de usarem a caneta no lugar do lápis, como se tivessem que pedir permissão sempre – era um pedido que faziam, mas que sempre esperavam, inclusive, que fosse negado. Sendo assim, a minha resposta gerava nos alunos o mesmo espanto que a pergunta recorrente deles gerava em mim. Todas as salas diziam: há a aula “normal” e a aula de filosofia! E nas aulas normais pouca coisa era permitida e/ou discutida. Daí, provavelmente, o espanto com as aulas de filosofia...
Estamos aqui diante de um impasse. Como poderia um professor de filosofia insistir na necessidade de o aluno buscar o sentido das coisas e, ao mesmo tempo, imprimir uma prática que caminha na direção contrária? Poderíamos, com certeza, estender esta questão para os professores das demais disciplinas, mas queremos enfatizar como ela adquire contornos mais significativos na filosofia.
Talvez o professor sofra da síndrome do pequeno poder, apontada por Heleieth Saffiotti (1989), pois não raro reproduz em sala de aula a relação de poder que vivencia no cotidiano. No caso da rede privada, sabemos bem que o que rege os professores é a lógica do mercado. Na rede pública não é diferente – embora esta lógica apareça de maneira mais sutil e, portanto, mais perversa. Nos dois casos vemos o professor sem autonomia alguma - sua prática é ancorada na falta de diálogo efetivo e na execução de decisões externas; ou seja, das quais não participa. Afirmam Adorno e Horkheimer (1986, p. 194-195), em “Dialética do Esclarecimento”:
Os fins só devem ser alcançados através de uma mediação, por assim dizer, através do mercado, graças à pequena vantagem que o poder consegue tirar observando a regra do jogo: concessões em troca de concessões. A inteligência é superada tão logo o poder deixa de obedecer à regra do jogo e passa à apropriação imediata. O meio da inteligência tradicional burguesa, a discussão, se desfaz. Os indivíduos já não podem mais conversar e sabem disso: por isso fizeram do jogo uma instituição séria, responsável e exigindo a utilização de todas as forças, de tal sorte que, por um lado, o diálogo não é mais possível e, por outro, nem por isso é preciso se calar. As coisas não se passam de modo muito diferente numa escala maior. Não é fácil falar com um fascista. Quando o outro toma a palavra, ele reage interrompendo-o com insolência. Ele é inacessível à razão porque só a enxerga na capitulação do outro.
A educação nunca foi tema fácil. Nem a escola. Nem as práticas educacionais. Estamos acostumados, por exemplo, a pensar acerca do currículo. Focalizamos o conteúdo de cada disciplina, mas nos esquecemos do que ensinamos aos nossos alunos também com nossas atitudes, com nossas posturas na relação que estabelecemos com eles e com o próprio conteúdo e, neste sentido, nossas posturas não deixam de ser políticas. Como professores somos tomados como modelo – às vezes positivo, outras negativo. Eis um tema que deveria ser objeto de discussão, mas para isto seria preciso que nós, professores, abdicássemos do lugar e do papel que sustentam nossa autoridade. Seria preciso que buscássemos também algum sentido em nossa profissão. Mas, se assim o fizéssemos, talvez não encontrássemos sentido maior que sustentasse a nossa autoridade...Talvez deste modo ficasse difícil manter uma sala de aula envolvida com um conteúdo. Não é à toa que vemos muitos professores criticando a progressão continuada de uma maneira simplista, pois a identificam como aprovação automática e sentem que perderam um instrumento de poder que sempre foi deles – a reprovação; ou seja, não criticam a falta efetiva de condições para se recuperar um aluno. O papel do professor e a relação professor-aluno também são, de certo modo, temas tabus. E, segundo Adorno (1999), em seu texto “Tabus a respeito do professor”, os tabus promovem a barbárie e a escola deveria promover o seu contrário – a desbarbarização da humanidade. Citando Adorno (1999, p. 176):
É certo que, na medida em que a sociedade extrai de si mesma a barbárie, a escola bem pouco pode opor resistência. Mas se a barbárie, esta sombra terrível que paira sobre nossa existência, consiste justamente no contrário da formação, então também é verdade que o essencial reside na desbarbarização dos indivíduos. A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato de sua sobrevivência. A ela deve servir a escola,  por limitados que sejam seu âmbito e suas possibilidades e, para tanto, precisa libertar-se dos tabus, sob cuja pressão se reproduz a barbárie. O pathos da escola atual, sua seriedade moral é, no contexto de hoje e, sob a condição de assumir essa consciência, a possibilidade de trabalho imediato para libertar a humanidade da barbárie.
Neste mesmo texto, Adorno (1999, p. 158-159) explica-nos em que sentido compreende os tabus:
É o que denomino tabus: representações inconscientes ou pré-conscientes dos que se candidatam a essa profissão – mas também dos demais, em especial das próprias crianças – que se impõem como uma espécie de interdição psíquica a essa profissão e que lhes levantam dificuldades, das quais raramente se alcança uma idéia clara. Portanto, emprego o conceito de tabu num sentido mais rigoroso como a sedimentação coletiva de representações que, de maneira similar às de caráter econômico que mencionei, perderam sua base em grande medida, mas que como preconceitos sociais e psicológicos persistem teimosamente e, por sua vez, tornam-se forças atuantes na realidade, tornando-se forças reais.
Trago estas afirmações de Adorno porque desejo nelas me amparar para as colocações que farei a seguir. Imaginem uma música do estilo Axé, cuja coreografia todos sabem de cor. Assim me parece a escola. Em geral, não encontramos neste espaço um lugar para qualquer expressão individual. Nela mora a dessensibilização, o uniforme, o homogêneo. Uma escola administrada, com gestos controlados que traduzem uma absoluta falta de sentido. E o professor também dança no mesmo ritmo; ele está conformado a este local e já nem sabe mais qual o seu papel. É por isto que se encanta com projetos especiais e reformas pedagógicas que, segundo Adorno, não trazem contribuições significativas ou até mesmo reforçam as crises (1996, 388). É por isto que se entrega a dicotomias, tais como “pedagogia tradicional x pedagogia crítica”. É por isto que faz de tudo para manter seu poder em sala de aula e muitas vezes o sustenta com “argumentos pedagógicos”. É por isto que muitas vezes dissimula seu autoritarismo pela idéia de autoridade. É por isto, enfim, que se apega a modelos, querendo tornar-se, inclusive, mais um deles. Mas, por que mesmo tudo isto? Emprestemos mais uma vez ainda as palavras de Adorno (1996, 391):
A conformação às relações se debate com as fronteiras do poder. Todavia, na vontade de se organizar essas relações de uma maneira digna de seres humanos, sobrevive o poder como princípio que se utiliza da conciliação. Desse modo, a adaptação se reinstala e o próprio espírito se converte em fetiche, em superioridade do meio organizado universal sobre todo fim ra­cional e no brilho da falsa ra­cionalidade vazia. Ergue-se uma redoma de cristal que, por se desconhecer, julga-se liberdade. E essa consciência falsa amalgama-se por si mesma à igualmente falsa e soberba atividade do espí­rito. 
Talvez, então, este professor prefira manter relações de poder ao invés de explicitá-las, porque de outro modo ele evidenciaria a sua fragilidade, a sua humanidade. Prefere-se idealizado, talvez. Assumir seus conflitos implicaria uma revisão de seu papel enquanto professor. Assumir as relações de poder presentes na relação professor-aluno e no espaço escolar significaria defrontar-se com o medo de se ver como é e precisar ser outro. Talvez por isto este professor prefira escamotear tais conflitos para si mesmo, pois de outro modo, precisaria buscar um sentido em sua prática, um sentido que, na verdade, parece ainda lhe escapar por completo. Para não ver sua imagem arranhada, por outros e por si mesmo, este professor prefere conformar-se, sob pena de ser obrigado a admitir que nem ele e nem seu aluno se sentem em casa neste lugar chamado escola e que o sonho da formação ainda é apenas uma promessa. Talvez este professor precise manter tudo como está para não enxergar que sua profissão está envolta em tabus.
Por outro lado, o poder da totalidade sobre o indivíduo prosperou com tal despropor­ção que tem que reproduzir em si esse vazio de forma. O que antes estava de tal modo configurado que os su­jeitos podiam conseguir aí sua imagem - problemática que fosse — tem essa origem; porém eles estão tão destituídos de liberdade que sua vida conjunta não se ar­ticula como verdadeira, pois lhes falta o necessário apoio em si mesmos. Fato que fica expresso em palavras fortes como ideal ou modelo, nas quais vem inscrita sua própria impossibilidade.  (ADORNO, 1996, p. 396-397).

O QUE É QUE A FILOSOFIA TEM QUE A EDUCAÇÃO NÃO TEM?

A educação tem se adaptado à escola ao invés de transformá-la. O que é a escola sem pessoas? Nada. Entretanto, as pessoas continuam sendo pessoas sem a escola. Custa-nos pensar, inclusive, que as pessoas podem ser mais pessoas fora da escola. A escola não pode ser tomada como um fim; não pode querer ser mais realista que o rei. O administrativo, a gestão, a instituição não podem se sobrepor à formação. Mas, a educação tem se conformado em ocupar este espaço da escola de modo extremamente servil; a escola tem sido a senhora da educação. Quando se fecha em seus modelos, linhas e correntes pratica a servidão e o abandono de seu fim – a formação. Portanto, reproduz a barbárie.
Voltemos então ao conceito de filosofia e emprestemos a poesia de Arnaldo Antunes para pensá-lo. Imaginemos a palavra filosofia antes de cada frase.
Filosofia: que não é o que não pode ser que
Filosofia: não é o que não pode
Filosofia: ser que não é
Filosofia: o que não pode ser que não
Filosofia: é o que não
Filosofia: pode ser
Filosofia: que não
Filosofia: É
Filosofia: o que não pode ser que
Filosofia: não é o que não pode ser
Filosofia: que não é o que
Filosofia: o que?
Filosofia: o que?
Filosofia: o que?
Filosofia: que não é o que não pode ser que não é
Qual o papel da filosofia neste contexto? O que é que a filosofia tem que a educação não tem? O que a distingue das demais disciplinas? O que a filosofia é ? O que a filosofia não é? O que é e o que não é filosofia? O que a filosofia pode ser? O quê? O quê? Para o filósofo Matthew Lipman (1995) fazemos filosofia quando estamos diante do pensamento crítico, criativo e cuidadoso. Para Saviani (1975), filosofia é uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto. Outros reforçam alguns destes aspectos – ou em torno deles - em detrimento dos demais e ainda há os que acatam todos estes elementos como sendo definidores da filosofia.
Mas, nos perguntamos: as demais disciplinas não precisariam desenvolver reflexões radicais, rigorosas e de conjunto? Não precisariam estimular o pensamento crítico, criativo e cuidadoso? A filosofia e o questionar filosófico não deveriam integrar a formação (Bildung)?É possível dissociar crítica e criação? Não me parece plausível. Então, o que define a filosofia? A questão é que a filosofia não se deixa exatamente definir e é neste sentido que ela poderia educar o educador, pois a educação só parece ter algum sentido quando tomada em seu próprio movimento e em sua vertente emancipatória e, para tanto, é preciso colocar a formação em primeiro lugar. Então o que é que a filosofia tem que a educação não tem? Talvez apenas um estranhamento de si mesma, uma inquietação. Mas, é possível que este estranhamento e esta inquietação façam toda a diferença, pois permitem que a filosofia se pense a si mesma, produza um tipo de pensamento que luta contra si mesmo, considerando-o em processo. Filosofia, portanto, não busca a síntese, o fechamento, o uniforme, o que padroniza. Filosofia é abertura, tensão e negação porque assim o é o movimento do conhecimento e o da própria vida.
Eis o motivo pelo qual afirmamos que este professor de filosofia não pode se conformar ao já dado. Porém, ao mesmo tempo, sabemos que se este professor de filosofia que habita um lugar chamado escola levasse a cabo uma crítica deste espaço, com certeza, gritaria por socorro e tomaria a direção do portão de saída. E seus alunos também. Mas, é possível que para que este movimento de crítica tenha mais espaço, a filosofia precise ocupar a escola. Enfim, a filosofia é o que não pode ser para poder ser o que deseja ser. Eis mais uma tensão.

Referências

ADORNO, T.W. Teoria da Semicultura.   Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, Bruno Pucci e Cláudia B. M. Abreu.  Educação & Sociedade, Campinas, v. XVII, n. 56, p. 388-411, dez. 1996.
ADORNO, T. W.   Texto de Theodor W. Adorno: Tabus a respeito do professor.  Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira. In: PUCCI, B.; RAMOS-DE-OLIVEIRA, N.; ZUIN, A.A.S.   Adorno: o poder do pensamento crítico.  2. ed.  Petrópolis: Vozes, 1999.  p. 157-176.
ADORNO, T. W.; Horkheimer, M.  Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos.   2. ed.  Tradução de Guido Antonio de Almeida.  Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
LIPMAN, M.   O pensar na educação.   Tradução de Ann Mary Fighiera Perpétuo.  Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.  
MARCUSE, H.   A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional.   Tradução de Giasone Rebuá. 4. ed.  Rio de Janeiro: Zahar, 1973. 
SAFFIOTTI, H.   A síndrome do pequeno poder.  In: AZEVEDO, M.A.; GUERRA, V.N.A. (orgs.).   Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder.   São Paulo: Iglu, 1989.  p.  13-21.
SAVIANI, D.   Educação Brasileira: estrutura e sistema.   2. ed.  São Paulo: Saraiva, 1975.



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