Resumo: Qual o lugar da
filosofia na escola? Qual a liberdade que a filosofia encontra na escola para
poder ser o que quer? A escola sustenta-se em modelos, busca a padronização, o
igual; já a filosofia procura aquilo que nem mesmo ela é para poder continuar
sendo filosofia. A filosofia pode incomodar a estrutura de poder da escola e
colaborar com a construção de um espaço mais humano, mas também estimular o seu
inverso ao não enfrentar as relações de poder nesta instituição, preservando o
que deveria ser eliminado. Em diversos textos - “Educação após
Auschwitz”, “Tabus a respeito do professor”, “Educação contra a barbárie”,
entre outros - Adorno aponta a necessidade de a escola opor resistência à
barbárie, que é o contrário da formação (Bildung). Assim, a escola deve
servir à desbarbarização da humanidade, mas para isto deve libertar-se dos
tabus. Que papel tem o professor de filosofia neste contexto? Sua postura
frente ao conhecimento, as relações que estabelece com os alunos e com o
conteúdo, marcam uma postura política e uma concepção de educação que podem
afirmar ou negar a própria filosofia. Como fazer efetivamente filosofia na
escola? Se a filosofia levasse a cabo discussões consideradas pedagógicas, o
que aconteceria com a escola? Talvez a escola corresse o risco de implodir ou a
filosofia desejasse sair da escola. Mas é possível que a filosofia tenha que
ocupar este espaço para ser parte do que deseja ser. Para realizar esta
reflexão partiremos de uma determinada concepção de filosofia. Procuraremos
pensar este conceito com o auxílio de um outro - o de dialética negativa
desenvolvido pelos frankfurtianos. A unidimensionalidade do homem na sociedade
industrial, denunciada por Marcuse, invade todos os campos, inclusive o
pensamento. Urge pensarmos o conceito de filosofia como comportando tensões;
eis um modo de resistir à sua estandartização.
Palavras-chave: filosofia;
escola; ensino; tabus; poder.
O que
(Arnaldo Antunes)
Que não é o que não pode ser que
Não é o que não pode
Ser que não é
O que não pode ser que não
É o que não
Pode ser
Que não
É
O que não pode ser que
Não é o que não pode ser
Que não é o que
O que?
O que?
O que?
Que não é o que não pode ser que não é
Não é o que não pode
Ser que não é
O que não pode ser que não
É o que não
Pode ser
Que não
É
O que não pode ser que
Não é o que não pode ser
Que não é o que
O que?
O que?
O que?
Que não é o que não pode ser que não é
Inicio a minha reflexão com esta música dos
Titãs, com letra de Arnaldo Antunes, para anunciar a direção que tomarei aqui.
Pensar sobre qualquer tema em torno do ensino de filosofia implica
necessariamente assumir uma postura frente ao próprio conceito de filosofia.
Nada mais simples. Nada mais complexo. É assim que vejo a filosofia: como um
campo de saber que precisa de sua própria negação para se afirmar, o que
certamente nos leva sempre a várias outras negações. Filosofia é o que é e é o
que não é, mas não buscamos a síntese neste movimento dialético que parece lhe
ser inerente. Não buscamos tampouco a definição deste conceito – no máximo
podemos tentar tateá-lo, contorná-lo, sob pena de fazer morrer o próprio
objeto. Assim, emprestamos o conceito de dialética negativa presente nos
filósofos frankfurtianos para vislumbrar um foco na imagem da filosofia que
tentamos delinear. Interessa-nos a tensão que se exprime no conceito de
filosofia: uma expressão que se nega para poder ser o que é, pois no momento em
que parece adquirir uma forma, abandona-a pela simples potencialidade que
carrega em si de já poder ser outra, diferente do que era e muito possivelmente
do seu vir a ser – como uma massinha de modelar. Mas, a filosofia não quer
modelar e nem moldar. Deste modo, negar a tensão presente na filosofia,
desfazê-la na busca de sua superação, não seria praticar a absolutização do seu
conceito e, por conseguinte, eliminar o potencial que ela encerra enquanto
campo de saber capaz de oferecer experiências formativas, mesmo em uma
sociedade administrada? Desfazer a tensão inerente ao conceito de filosofia não
seria congelá-lo? Como resistir à estandartização na filosofia? Marcuse (1973)
já denunciou que a unidimensionalidade do homem na sociedade industrial invade
todos os campos, inclusive o pensamento. Por vezes nem a filosofia escapa deste
movimento e, assim, corre o risco de privilegiar o momento adaptativo da
formação em detrimento do momento de transcendência, a heteronomia em
detrimento da autonomia, convertendo-se em semiformação. Afirma Theodor W.
Adorno (1996, p. 390), em “Teoria da semicultura”: “A formação que se esquece
disso, que descansa em si mesma e absolutiza-se, acaba por se converter em
semiformação”. E continua:
Quando o campo de forças a que chamamos
formação se congela em categorias fixas – sejam elas do espírito ou da
natureza, de transcendência ou de acomodação – cada uma delas, isolada,
coloca-se em contradição com seu sentido, fortalece a ideologia e promove uma
formação regressiva. (ADORNO, 1996, p. 390)
Assim, parece-nos que para não congelarmos o
potencial de formação que a filosofia carrega, é preciso compreendê-la como
comportando tensões, que não se pretendem conciliáveis; é preciso que nos
distanciemos de qualquer movimento de absolutização do seu próprio conceito.
Não é fácil a filosofia. Mas, por que deveria ser, se justamente a sua beleza maior reside na sua capacidade de enxergar o complexo? A filosofia está sempre revolvendo, agitando, fazendo uma espécie de upgrade. Neste sentido, fazer filosofia tem algo de muito desafiador tanto para o aluno quanto para o professor e é este fazer que queremos problematizar. Como é este fazer na escola? As indagações/provocações que se seguem terão sua origem e seu pano de fundo nesta questão.
Não é fácil a filosofia. Mas, por que deveria ser, se justamente a sua beleza maior reside na sua capacidade de enxergar o complexo? A filosofia está sempre revolvendo, agitando, fazendo uma espécie de upgrade. Neste sentido, fazer filosofia tem algo de muito desafiador tanto para o aluno quanto para o professor e é este fazer que queremos problematizar. Como é este fazer na escola? As indagações/provocações que se seguem terão sua origem e seu pano de fundo nesta questão.
PROBLEMATIZANDO
A escola é um local cheio de contradições. Esta
instituição é dotada de grande inércia; é conservadora e tradicional, mesmo
quando se pretende inovadora. Assim, se habitamos este espaço que promete o
educar, o fazemos muitas vezes somente por contingência ou, melhor dizendo, o
habitamos pelo que ele pode ser, mas que ainda não é. Refiro-me especialmente –
embora não especificamente – ao professor de filosofia. Refiro-me ao professor
que depois de ter trabalhado um ano em sala de aula com esta disciplina, ouve
uma colega – a professora responsável pela mesma série no ano seguinte -
dizendo: - “Estou tendo que ´pular miudinho´ com estes alunos. Tudo eles
criticam. Para tudo eles têm um argumento”.
Ótimo, pensa este professor de filosofia. Afinal,
não era isto mesmo o que queríamos? Esta é uma pergunta que incomoda, pois, ao
mesmo tempo em que traz o tom afirmativo, podemos sentir nela um certo espanto
e algum receio. Queremos que nossos alunos tenham uma experiência formativa de
qualidade, mas o que será de nós, professores, e da escola se esta formação se
efetivar?
Imaginemos uma aula de filosofia em que se
discute a questão do conhecimento e a partir dela outros temas como, por
exemplo, o aprender, o ensinar, as relações entre professores e alunos, a
autoridade e a disciplina. Imaginemos que esta discussão caminhe no sentido de
questionar o já dado, inclusive quanto às aulas de filosofia. Imaginemos que a
tão famosa disposição dos alunos em círculo seja posta em questão. Sim, é
verdade que o círculo promove condições melhores para uma aula de filosofia e
sabemos bem dos argumentos que temos para utilizar esta configuração espacial.
Mas, se ousarmos pensar de modo diferente sobre o já pensado, poderemos chegar
à conclusão de que o círculo é perfeito para exercer o controle disciplinar.
Por um lado, todos precisam ser vistos e ouvidos; por outro, parece que há uma
imposição sutil do ter que
– o aluno tem que falar,
o aluno tem que
escutar, o aluno tem que
prestar atenção ao outro. Há aqui qualquer semelhança com o que Foucault
escreveu sobre o panoptismo, não há? Entretanto, tudo é feito em nome da ética
e do respeito ao trabalho coletivo. Eis a sutileza. Uma sutileza que não passou
desapercebida por alunos que acabaram por levar a cabo o convite que a reflexão
filosófica insiste em lhes fazer. Afinal, não era isto que queríamos? Não se
trata de negar a idéia de círculo e muito menos de defender uma visão
relativista a partir do que expomos. Apenas estamos propondo um exercício de
imaginação para colocarmos em questão situações que merecem nossa atenção.
Do mesmo modo, costumamos defender o diálogo filosófico
e desprezar a conversa nas aulas de filosofia. Mas, se pensarmos de outro modo,
não poderíamos chegar à conclusão de que a conversação teria uma estrutura mais
interessante para a filosofia, uma vez que é mais flexível do que o diálogo,
que normalmente é carregado de normatizações ainda que implícitas? Novamente
afirmo: não estou defendendo o relativismo e/ou a falta de rigor nas aulas de
filosofia; apenas desejo traçar alguns exemplos de como poderíamos
problematizar aquilo que muitas vezes é tomado como consenso.
Na mesma direção, nos perguntamos: devemos tratar
“temas delicados”, tais como sexualidade, doença e morte? O que fazer?
Ignorá-los? São temas sérios. Como trabalhar temáticas que desacomodam as
relações na escola, na família e na vida, de modo geral, sem fazer discussões
“pela metade”? No caso da sexualidade, por exemplo, precisaríamos de um
programa específico para tal conteúdo. Entretanto, ainda que não elejamos temas
desta espécie, outras temáticas desembocam muitas vezes nestes assuntos
considerados mais problemáticos. Qual a interface que existe entre filosofia e
psicologia? O que os pais, os alunos, os demais professores – enfim, a escola
de um modo geral – esperam de nós? Nos anos noventa, ministrando a disciplina
filosofia para crianças, abordei a temática do medo com as primeiras séries do
ensino fundamental. A maior parte das crianças perdeu algum tipo de medo – em
geral do escuro ou de cachorro. Mas uma mãe veio me consultar sobre minhas
aulas porque a filha dela tinha uma doença de pele – vitiligo – que antes
estava “controlada” e que naquele momento havia voltado, talvez em função das
aulas de filosofia. Causa-nos preocupação situações como esta. Posteriormente a
aluna voltou a equilibrar-se diante da doença e começou a se relacionar bem
melhor com os colegas da classe.
A verdade é que não é possível fazer filosofia
sem que ela abale as estruturas internas de uma pessoa e desacomode suas
experiências existenciais. Para construir é preciso desconstruir, diz a
filosofia. Mas, não deveria ser esta também a perspectiva da escola? Não
deveria a escola buscar sentidos e desnudar conflitos, ao invés de camuflá-los?
O fato é que, em geral, a escola cria modelos
destituídos de sentidos; já a filosofia quebra modelos em busca de sentidos. A
escola está interessada em respostas; a filosofia quer perguntar. A escola
busca o igual, a padronização; a filosofia o diferente. A escola quer a
construção; a filosofia prefere desconstruir. Que tipo de convivência podemos
esperar desta relação? Parece haver uma forte implicação decorrente da presença
da filosofia na escola, a saber, o incômodo que esta disciplina gera para as
demais e para a própria estrutura da escola. Queremos destacar, entretanto, que
este incômodo surge também nas aulas de filosofia quando nos vemos
circunscritos a uma instituição que não pode facilmente levar a filosofia a
sério, sob pena de correr o risco de ver desmantelados os modelos que a
sustentam e precisar ser outra, diferente do que era. Mas, não gostaríamos de
habitar uma escola diferente?
UMA PEDRA NO MEIO
DO CAMINHO. UM CAMINHO NO MEIO DA PEDRA.
Uma menininha de dois anos começa a freqüentar a
escola. Como tantas outras, ainda não se adaptou. Por isto elas choram. Mas
esta pequena faz diferente. Ela grita: “-Socorro! Socorro!”. Sim, sabemos bem
que ela pede socorro porque ficará distante dos pais, mas quando me contaram
esta história, pensei: “- Ela está certa em gritar por socorro. Se soubesse o
quão pertinente é este grito, se soubesse quantas vezes sentirá vontade de pedir
socorro em sua vida escolar, em sua permanência nesta instituição chamada
escola...!”
A filosofia tem uma pedra no meio do caminho – a
escola. Por outro lado, às vezes a filosofia é que aparece como uma pedra no
caminho da escola. Mas, será possível encontrar um caminho no meio das pedras?
Quando iniciei minhas aulas de filosofia para
crianças, decidi – juntamente com a direção – que não haveria nota nesta
disciplina. O sistema do computador, entretanto, estava preparado para atribuir
valores numéricos em todas as disciplinas. Depois de muito trabalho, chegou-se
a uma solução – a de colocar asteriscos em filosofia no boletim do aluno. Qual
não foi minha surpresa quando fui questionada por um grupo de alunos sobre as
“estrelinhas” – expressão que usavam para denominar os asteriscos. Não sei por
qual motivo, o número de asteriscos era arbitrário em cada boletim. Ouvia,
então, o questionamento dos alunos: “Professora, por que ´tirei’ três
estrelinhas e o fulano ´tirou’ cinco?” Isto ocorreu em todas as classes. Não é
fácil buscar novos sentidos na escola.
Há ainda um outro fato interessante de ser
comentado nesta mesma perspectiva: em minha aula eles podiam utilizar qualquer
material que tivessem: canetinhas coloridas, caneta esferográfica, corretivo,
etc. Não instituía qualquer proibição – apenas discutia com os alunos sobre o
uso destes materiais. Era comum, por exemplo, que os alunos da primeira série
usassem lápis (e não caneta), uma vez que se encontravam em fase de
alfabetização e precisavam apagar muitas vezes o que haviam escrito. Mas,
apenas destacava que o uso da caneta implicaria no uso do corretivo e que o
lápis poderia ser facilmente apagado com borracha. Em função disto, muitos se
decidiam pelo lápis; porém, outros insistiam no uso da caneta. O engraçado é
que o ano passava e eles continuavam a me interrogar sobre a possibilidade de
usarem a caneta no lugar do lápis, como se tivessem que pedir permissão sempre
– era um pedido que faziam, mas que sempre esperavam, inclusive, que fosse
negado. Sendo assim, a minha resposta gerava nos alunos o mesmo espanto que a
pergunta recorrente deles gerava em mim. Todas as salas diziam: há a aula
“normal” e a aula de filosofia! E nas aulas normais pouca coisa era permitida
e/ou discutida. Daí, provavelmente, o espanto com as aulas de filosofia...
Estamos aqui diante de um impasse. Como poderia
um professor de filosofia insistir na necessidade de o aluno buscar o sentido
das coisas e, ao mesmo tempo, imprimir uma prática que caminha na direção
contrária? Poderíamos, com certeza, estender esta questão para os professores
das demais disciplinas, mas queremos enfatizar como ela adquire contornos mais
significativos na filosofia.
Talvez o professor sofra da síndrome do pequeno
poder, apontada por Heleieth Saffiotti (1989), pois não raro reproduz em sala
de aula a relação de poder que vivencia no cotidiano. No caso da rede privada,
sabemos bem que o que rege os professores é a lógica do mercado. Na rede
pública não é diferente – embora esta lógica apareça de maneira mais sutil e,
portanto, mais perversa. Nos dois casos vemos o professor sem autonomia alguma
- sua prática é ancorada na falta de diálogo efetivo e na execução de decisões
externas; ou seja, das quais não participa. Afirmam Adorno e Horkheimer (1986,
p. 194-195), em “Dialética do Esclarecimento”:
Os fins só devem ser alcançados através
de uma mediação, por assim dizer, através do mercado, graças à pequena vantagem
que o poder consegue tirar observando a regra do jogo: concessões em troca de
concessões. A inteligência é superada tão logo o poder deixa de obedecer à
regra do jogo e passa à apropriação imediata. O meio da inteligência
tradicional burguesa, a discussão, se desfaz. Os indivíduos já não podem mais
conversar e sabem disso: por isso fizeram do jogo uma instituição séria,
responsável e exigindo a utilização de todas as forças, de tal sorte que, por
um lado, o diálogo não é mais possível e, por outro, nem por isso é preciso se
calar. As coisas não se passam de modo muito diferente numa escala maior. Não é
fácil falar com um fascista. Quando o outro toma a palavra, ele reage
interrompendo-o com insolência. Ele é inacessível à razão porque só a enxerga
na capitulação do outro.
A educação nunca foi tema fácil. Nem a escola.
Nem as práticas educacionais. Estamos acostumados, por exemplo, a pensar acerca
do currículo. Focalizamos o conteúdo de cada disciplina, mas nos esquecemos do
que ensinamos aos nossos alunos também com nossas atitudes, com nossas posturas
na relação que estabelecemos com eles e com o próprio conteúdo e, neste
sentido, nossas posturas não deixam de ser políticas. Como professores somos
tomados como modelo – às vezes positivo, outras negativo. Eis um tema que
deveria ser objeto de discussão, mas para isto seria preciso que nós,
professores, abdicássemos do lugar e do papel que sustentam nossa autoridade.
Seria preciso que buscássemos também algum sentido em nossa profissão. Mas, se
assim o fizéssemos, talvez não encontrássemos sentido maior que sustentasse a
nossa autoridade...Talvez deste modo ficasse difícil manter uma sala de aula
envolvida com um conteúdo. Não é à toa que vemos muitos professores criticando
a progressão continuada de uma maneira simplista, pois a identificam como
aprovação automática e sentem que perderam um instrumento de poder que sempre
foi deles – a reprovação; ou seja, não criticam a falta efetiva de condições
para se recuperar um aluno. O papel do professor e a relação professor-aluno
também são, de certo modo, temas tabus. E, segundo Adorno (1999), em seu texto
“Tabus a respeito do professor”, os tabus promovem a barbárie e a escola
deveria promover o seu contrário – a desbarbarização da humanidade. Citando
Adorno (1999, p. 176):
É certo que, na medida em que a
sociedade extrai de si mesma a barbárie, a escola bem pouco pode opor
resistência. Mas se a barbárie, esta sombra terrível que paira sobre nossa
existência, consiste justamente no contrário da formação, então também é
verdade que o essencial reside na desbarbarização
dos indivíduos. A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato de sua
sobrevivência. A ela deve servir a escola, por limitados que sejam seu
âmbito e suas possibilidades e, para tanto, precisa libertar-se dos tabus, sob
cuja pressão se reproduz a barbárie. O pathos
da escola atual, sua seriedade moral é, no contexto de hoje e, sob
a condição de assumir essa consciência, a possibilidade de trabalho imediato
para libertar a humanidade da barbárie.
Neste mesmo texto, Adorno (1999, p. 158-159)
explica-nos em que sentido compreende os tabus:
É o que denomino tabus: representações
inconscientes ou pré-conscientes dos que se candidatam a essa profissão – mas
também dos demais, em especial das próprias crianças – que se impõem como uma
espécie de interdição psíquica a essa profissão e que lhes levantam dificuldades,
das quais raramente se alcança uma idéia clara. Portanto, emprego o conceito de
tabu num sentido mais rigoroso como a sedimentação coletiva de representações
que, de maneira similar às de caráter econômico que mencionei, perderam sua
base em grande medida, mas que como preconceitos sociais e psicológicos
persistem teimosamente e, por sua vez, tornam-se forças atuantes na realidade,
tornando-se forças reais.
Trago estas afirmações de Adorno porque desejo
nelas me amparar para as colocações que farei a seguir. Imaginem uma música do
estilo Axé, cuja coreografia todos sabem de cor. Assim me parece a escola. Em
geral, não encontramos neste espaço um lugar para qualquer expressão
individual. Nela mora a dessensibilização, o uniforme, o homogêneo. Uma escola
administrada, com gestos controlados que traduzem uma absoluta falta de
sentido. E o professor também dança no mesmo ritmo; ele está conformado a este
local e já nem sabe mais qual o seu papel. É por isto que se encanta com
projetos especiais e reformas pedagógicas que, segundo Adorno, não trazem
contribuições significativas ou até mesmo reforçam as crises (1996, 388). É por
isto que se entrega a dicotomias, tais como “pedagogia tradicional x pedagogia
crítica”. É por isto que faz de tudo para manter seu poder em sala de aula e
muitas vezes o sustenta com “argumentos pedagógicos”. É por isto que muitas
vezes dissimula seu autoritarismo pela idéia de autoridade. É por isto, enfim,
que se apega a modelos, querendo tornar-se, inclusive, mais um deles. Mas, por
que mesmo tudo isto? Emprestemos mais uma vez ainda as palavras de Adorno
(1996, 391):
A conformação às relações se debate com
as fronteiras do poder. Todavia, na vontade de se organizar essas relações de
uma maneira digna de seres humanos, sobrevive o poder como princípio que se
utiliza da conciliação. Desse modo, a adaptação se reinstala e o próprio
espírito se converte em fetiche, em superioridade do meio organizado universal
sobre todo fim racional e no brilho da falsa racionalidade vazia. Ergue-se
uma redoma de cristal que, por se desconhecer, julga-se liberdade. E essa
consciência falsa amalgama-se por si mesma à igualmente falsa e soberba
atividade do espírito.
Talvez, então, este professor prefira manter
relações de poder ao invés de explicitá-las, porque de outro modo ele
evidenciaria a sua fragilidade, a sua humanidade. Prefere-se idealizado,
talvez. Assumir seus conflitos implicaria uma revisão de seu papel enquanto
professor. Assumir as relações de poder presentes na relação professor-aluno e
no espaço escolar significaria defrontar-se com o medo de se ver como é e
precisar ser outro. Talvez por isto este professor prefira escamotear tais
conflitos para si mesmo, pois de outro modo, precisaria buscar um sentido em
sua prática, um sentido que, na verdade, parece ainda lhe escapar por completo.
Para não ver sua imagem arranhada, por outros e por si mesmo, este professor
prefere conformar-se, sob pena de ser obrigado a admitir que nem ele e nem seu
aluno se sentem em casa neste lugar chamado escola e que o sonho da formação
ainda é apenas uma promessa. Talvez este professor precise manter tudo como
está para não enxergar que sua profissão está envolta em tabus.
Por outro lado, o poder da totalidade
sobre o indivíduo prosperou com tal desproporção que tem que reproduzir em si
esse vazio de forma. O que antes estava de tal modo configurado que os sujeitos
podiam conseguir aí sua imagem - problemática que fosse — tem essa origem;
porém eles estão tão destituídos de liberdade que sua vida conjunta não se articula
como verdadeira, pois lhes falta o necessário apoio em si mesmos. Fato que fica
expresso em palavras fortes como ideal
ou modelo, nas
quais vem inscrita sua própria impossibilidade. (ADORNO, 1996, p.
396-397).
O QUE É QUE A
FILOSOFIA TEM QUE A EDUCAÇÃO NÃO TEM?
A educação tem se adaptado à escola ao invés de
transformá-la. O que é a escola sem pessoas? Nada. Entretanto, as pessoas
continuam sendo pessoas sem a escola. Custa-nos pensar, inclusive, que as
pessoas podem ser mais pessoas fora da escola. A escola não pode ser tomada
como um fim; não pode querer ser mais realista que o rei. O administrativo, a
gestão, a instituição não podem se sobrepor à formação. Mas, a educação tem se
conformado em ocupar este espaço da escola de modo extremamente servil; a
escola tem sido a senhora da educação. Quando se fecha em seus modelos, linhas
e correntes pratica a servidão e o abandono de seu fim – a formação. Portanto,
reproduz a barbárie.
Voltemos então ao conceito de filosofia e
emprestemos a poesia de Arnaldo Antunes para pensá-lo. Imaginemos a palavra
filosofia antes de cada frase.
Filosofia: que não é o que não pode
ser que
Filosofia: não é o que não pode
Filosofia: ser que não é
Filosofia: o que não pode ser que não
Filosofia: é o que não
Filosofia: pode ser
Filosofia: que não
Filosofia: É
Filosofia: o que não pode ser que
Filosofia: não é o que não pode ser
Filosofia: que não é o que
Filosofia: o que?
Filosofia: o que?
Filosofia: o que?
Filosofia: que não é o que não pode ser que não é
Filosofia: não é o que não pode
Filosofia: ser que não é
Filosofia: o que não pode ser que não
Filosofia: é o que não
Filosofia: pode ser
Filosofia: que não
Filosofia: É
Filosofia: o que não pode ser que
Filosofia: não é o que não pode ser
Filosofia: que não é o que
Filosofia: o que?
Filosofia: o que?
Filosofia: o que?
Filosofia: que não é o que não pode ser que não é
Qual o papel da filosofia neste contexto? O que é
que a filosofia tem que a educação não tem? O que a distingue das demais
disciplinas? O que a filosofia é ? O que a filosofia não é? O que é e o que não
é filosofia? O que a filosofia pode ser? O quê? O quê? Para o filósofo Matthew
Lipman (1995) fazemos filosofia quando estamos diante do pensamento crítico,
criativo e cuidadoso. Para Saviani (1975), filosofia é uma reflexão radical,
rigorosa e de conjunto. Outros reforçam alguns destes aspectos – ou em torno deles
- em detrimento dos demais e ainda há os que acatam todos estes elementos como
sendo definidores da filosofia.
Mas, nos perguntamos: as demais disciplinas não
precisariam desenvolver reflexões radicais, rigorosas e de conjunto? Não
precisariam estimular o pensamento crítico, criativo e cuidadoso? A filosofia e
o questionar filosófico não deveriam integrar a formação (Bildung)?É possível
dissociar crítica e criação? Não me parece plausível. Então, o que define a
filosofia? A questão é que a filosofia não se deixa exatamente definir e é
neste sentido que ela poderia educar o educador, pois a educação só parece ter
algum sentido quando tomada em seu próprio movimento e em sua vertente
emancipatória e, para tanto, é preciso colocar a formação em primeiro lugar.
Então o que é que a filosofia tem que a educação não tem? Talvez apenas um
estranhamento de si mesma, uma inquietação. Mas, é possível que este
estranhamento e esta inquietação façam toda a diferença, pois permitem que a
filosofia se pense a si mesma, produza um tipo de pensamento que luta contra si
mesmo, considerando-o em processo. Filosofia, portanto, não busca a síntese, o
fechamento, o uniforme, o que padroniza. Filosofia é abertura, tensão e negação
porque assim o é o movimento do conhecimento e o da própria vida.
Eis o motivo pelo qual afirmamos que este
professor de filosofia não pode se conformar ao já dado. Porém, ao mesmo tempo,
sabemos que se este professor de filosofia que habita um lugar chamado escola
levasse a cabo uma crítica deste espaço, com certeza, gritaria por socorro e
tomaria a direção do portão de saída. E seus alunos também. Mas, é possível que
para que este movimento de crítica tenha mais espaço, a filosofia precise
ocupar a escola. Enfim, a filosofia é o que não pode ser para poder ser o que
deseja ser. Eis mais uma tensão.
Referências
ADORNO, T.W. Teoria da
Semicultura. Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, Bruno Pucci e
Cláudia B. M. Abreu. Educação
& Sociedade, Campinas, v. XVII, n. 56, p. 388-411, dez. 1996.
ADORNO, T. W. Texto de
Theodor W. Adorno: Tabus a respeito do professor. Tradução de Newton
Ramos-de-Oliveira. In: PUCCI, B.; RAMOS-DE-OLIVEIRA, N.; ZUIN,
A.A.S. Adorno:
o poder do pensamento crítico. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
1999. p. 157-176.
ADORNO, T. W.; Horkheimer, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos
filosóficos. 2. ed. Tradução de Guido Antonio de
Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
LIPMAN, M. O pensar na educação.
Tradução de Ann Mary Fighiera Perpétuo. Petrópolis, RJ: Vozes,
1995.
MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial:
o homem unidimensional. Tradução de Giasone Rebuá. 4. ed. Rio
de Janeiro: Zahar, 1973.
SAFFIOTTI, H. A síndrome
do pequeno poder. In: AZEVEDO, M.A.; GUERRA, V.N.A. (orgs.). Crianças vitimizadas: a
síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu, 1989. p.
13-21.
SAVIANI, D. Educação Brasileira:
estrutura e sistema. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1975.
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