TEXTOS DE E SOBRE FREUD
A - Textos de autores sobre Freud
1. Tópicos da teoria psicanalítica freudiana
Prof. Laerte M. Santos
1. Freud
nasceu em 1856 na Áustria e faleceu em 1939 em Londres.
2. Fundador
da PSICANÁLISE ou TEORIA PSICANALÍTICA que é o campo de hipóteses sobre o
funcionamento e desenvolvimento da mente no homem. Se interessa tanto pelo
funcionamento mental normal como pelo patológico.
3. Freud
demonstrou que o homem não é apenas um ser racional. Há impulsos
irracionais que nos influenciam.
4. Estes
impulsos irracionais se manifestam através do INCONSCIENTE
5. INCONSCIENTE = parte maior de nossa
psique, não é uma coisa embutida no fundo da cabeça dos homens e nem um lugar e
sim uma energia e uma lógica em tudo oposta à lógica da consciência que é a parte menor e mais frágil da nossa
estrutura mental. Podemos imaginar a consciência como a ponta de um iceberg e a montanha submersa abaixo
como o inconsciente. "A percepção que temos do mundo é consciência; as
lembranças, inclusive a dos sonhos e devaneios são consciência. A memória é
consciência e só há memória de fatos mentais conscientes. " (pág. 46, O que é psicanálise, Fábio Herrmann)
6. Características do INCONSCIENTE:
opostas às características da consciência. Por isso desconhece o tempo, a
negação e a contradição. Suas manifestações não são percebidas diretamente
pela consciência por isso requer deciframento e interpretação. (Exemplo:
nos sonhos o inconsciente se revela através de um conteúdo manifesto = o
que aparece na consciência - e de um conteúdo
latente = o conteúdo real e oculto). "O inconsciente... é uma
interpretação ao contrário" (pág. 40, O que é psicanálise, Fábio Herrmann). Se como veremos o princípio
básico do funcionamento da mente é, segundo Freud, o de evitar desprazer, o
INCONSCIENTE é então o lugar teórico das representações recalcadas ou o
próprio processo de recalcamento, que impede certas idéias de emergir na
consciência.
7. A sexualidade tem uma importância
fundamental na psicanálise mas não tem um sentido restrito, ou seja, apenas
genital. Tem um sentido mais amplo = toda e qualquer forma de
gratificação ou busca do prazer. Então a sexualidade neste sentido amplo
existe em nós desde o nosso nascimento.
8. A
partir deste sentido amplo da sexualidade podemos entender os princípios
antagônicos que fazem parte da teoria psicanalítica freudiana: A) EROS (do grego clássico, vida)
X THANATOS
(do grego clássico, morte) B) Princípio do Prazer X
Princípio da Realidade
- Eros = Eros não é apenas
o deus do amor, mas é sobretudo a tendência à promoção de laços, tendência a
estabelecer ligações. Ligado às
pulsões de vida, impulsiona ao contato, ao embate com o outro e com a
realidade. Sendo a vida tensão permanente, conflito permanente coloca-nos no
interior de afetos conflitantes e pode não ser a realização do princípio do
prazer.
- Thanatos = é o princípio
profundo do desejo de não separação, de retorno à situação uterina ou fetal,
quer o repouso, a aniquilação das tensões. Está vinculado às pulsões da morte pois somente esta
poderá satisfazer o desejo de equilíbrio, repouso e paz absolutos. Quer a
abolição das tensões, o grau zero de energia. A pulsão de morte "designa
uma categoria fundamental de pulsões que se contrapõe a pulsões de vida e que
tendem para a redução completa das tensões, isto é, tendem a reconduzir o ser
vivo ao estado anorgânico".(LAPLANCHE E PONTALIS, 1983; p.407).
No entanto a vida, expressa por
EROS, é uma vitória sobre a força conservadora do inorgânico. Sobrevive-se
porque o organismo uma vez "jogado na vida" quer se conservar e fazer
seu próprio percurso até a morte.
- Princípio do Prazer = é o
querer imediatamente algo satisfatório e querê-lo cada vez mais. "É a
tendência que, em busca da descarga imediata da energia psíquica, não quer
saber de mais nada - nem do real, nem do outro, nem mesmo da sobrevivência do
próprio sujeito" (pág. 95, "Sobre Ética e Psicanálise", Maria
Rita Kehl). “... Se o Princípio do Prazer busca a descarga imediata de qualquer
excitação – e à recordação deste percurso que vai da carga de excitação (desprazer) à sua descarga (prazer), chamamos desejo – isto eqüivale a dizer que busca um estado de não-tensão, de não-desejo, de repetição de um eterno mesmo. (Maria Rita Kehl, “O
Desejo”, Cia de Letras, pág. 370, 1990) .Não está necessariamente ligado a Eros mas de forma mais profunda a Thanatos pois "se o desejo do homem
for o repouso, o imutável, a fuga do conflito, somente a morte (Thanatos) poderá satisfazer tal
desejo." (pág. 63, "Repressão Sexual", Marilena Chauí)
- Princípio da Realidade
= princípio que nos faz "compreender e aceitar que nem tudo o que se
deseja é possível, que se for possível nem sempre é imediato, que nem sempre
pode ser conservado e muitas vezes não pode ser aumentado." (pág. 63, op. Cit., Marilena Chauí). Impõe-nos
limites internos e externos.
9. Psicanálise e Agressividade - Freud
presumiu na nossa vida mental a existência de dois impulsos, o sexual e
o agressivo. Os dois impulsos se
encontram normalmente fundidos. Assim um ato de crueldade pode possuir um
significado sexual inconsciente como um
ato de amor pode ser um meio inconsciente de descarga do impulso
agressivo. A agressividade tem uma origem biológica e social na teoria
freudiana. A agressividade faz parte das pulsões de morte mas não está
ligada exclusivamente a Thanatos.
Está também ligada a Eros fazendo
parte das pulsões eróticas. Isto acontece por exemplo quando tentamos modificar
o outro ou o mundo para torná-los mais compatíveis com o princípio do prazer.
No limite é uma tendência destrutiva mas também "representa a vocação
humana para a rebeldia." (pág. 473, Os sentidos da Paixão, Maria Rita Kehl). Toda civilização faz um
pacto pelo qual se reprime grande parte da agressividade em troca das vantagens
da convivência humana. Mas o preço que
pagamos é o de um rebaixamento geral dos instintos de vida e o excesso
de repressão pode levar às doenças psíquicas. O ideal para Freud "seria
um equilíbrio entre a realidade psíquica do homem e as exigências da vida em
sociedade". (pág. 116 da apostila, Texto: O caso de Romualdo e a violência)
10. A nossa vida psíquica tem três instâncias
segundo Freud: 1ª) ID = parte
inconsciente formada por instintos e impulsos orgânicos e desejos
inconscientes, (ou pulsões) que
são regidas pelo Princípio do Prazer
e são de natureza sexual no sentido amplo já explicitado acima. O Centro do ID
é o Complexo de Édipo. 2ª) SUPEREGO = parte inconsciente.
Instância repressora do ID e do EGO, proveniente tanto das proibições culturais
e sociais interiorizadas "quanto das proibições que cada um de nós elabora
inconscientemente sobre os afetos." (M. Chauí, op. cit., pág. 66). É o agente
da civilização que tem o papel de dominar o perigoso desejo de agressão do
indivíduo. Através dele a civilização consegue inibir a agressividade humana
introjetando-a para o interior do sujeito propiciando o SENTIMENTO DE CULPA.
3ª) EGO = é a consciência submetida
aos desejos do ID e repressão do SUPEREGO. Obedece ao Princípio da Realidade. Vive sob angústia constante pois busca um equilíbrio entre os desejo do ID e
a repressão do SUPEREGO, busca satisfazer ao mesmo tempo o ID e o SUPEREGO. Quando
o conflito é muito grande e o EGO não consegue satisfazer o ID este é rejeitado
determinando o processo chamado REPRESSÃO.
Mas o que foi reprimido não permanece no inconsciente e reaparece então sob a
forma de SINTOMAS (=representantes do reprimido).
11. O SUPEREGO HOJE – “No momento de
acumulação do capital, no momento weberiano do capitalismo, o importante
não era gozar mas sacrificar, acumular, trabalhar. Hoje, ao contrário, o
importante é dispender, gozar, você tem direito ao gozo. Como conseqüência
temos, por exemplo, a cultura do narcisismo, como diria Christopher
Lasch, na qual o sujeito está comprometido em se proporcionar o máximo de gozo.
Mas isso gera uma enorme angústia, pois o gozo é impossível, principalmente
esse gozo pleno que nos exige a cultura da sociedade de mercado: gozar sempre e
muito, tudo que se puder. Cria-se uma dívida com o superego, pois o mesmo
superego que cobra que você não goze, que se sacrifique, cobra que você
goze. Hoje o importante é dispender,
gozar, você tem direito ao gozo. Mas isso gera uma enorme angústia, pois o
gozo é impossível, principalmente esse gozo pleno que nos exige a cultura
da sociedade de mercado: gozar sempre e muito, tudo que se puder.” (Maria Rita
Kehl)
12. SUBLIMAÇÃO - Os desejos inconscientes são transformados em
uma outra coisa, exprimem-se pela criação de uma outra coisa: as obras de arte,
as ciências, a religião, a filosofia, as técnicas, as instituições sociais e as
ações políticas. Artistas, místicos, pensadores, escritores, cientistas,
líderes políticos satisfazem seus desejos pela sublimação e, portanto, pela
realização de obras e pela criação de instituições religiosas, sociais,
políticas, etc. Porém, assim como a loucura é a impossibilidade do
ego para realizar sua dupla função,
também a sublimação pode não ser alcançada e, em seu lugar, surgir uma
perversão social ou coletiva, uma
loucura social ou coletiva. O
nazismo é um exemplo de perversão, em vez
de sublimação. A propaganda, que induz em nós falsos desejos sexuais pela
multiplicação das imagens de prazer, é outro exemplo de perversão ou de
incapacidade para a sublimação.
13.
NARCISISMO -
Sentimento emotivo de amor dirigido ao próprio indivíduo (homem ou mulher). É
termo criado por Freud. Se bem que se trata de um sentimento até certo ponto
natural, especialmente nas crianças, pode entretanto manifestar-se na idade
adulta como uma irregularidade às vezes provocada por conflitos, desajustes
sexuais, decepções amorosas, etc. Segundo a Psicanálise, o Narcisismo leva a
eleger-se a si próprio como objeto de amor, em vez de essa emoção ser dirigida
a outra pessoa do sexo oposto; a libido é dirigida anormalmente ao próprio eu. “A
criança conserva em sua fantasia a fusão
narcísica inicial com a mãe até que alguma experiência de separação venha
desiludi-la. Para o pequeno ser narcisista, tudo aquilo que é recebido como bom
e prazeroso, é sentido como parte de si mesmo, somente quando alguma coisa
frustra a criança, é que ela a sente como parte do mundo externo. A ilusão da
criança de que ela e a mãe são Um, de que ela é tudo o que a mãe deseja se
rompe quando o desejo da mãe se move para outro lugar. Neste instante a criança
percebe que o Grande Outro não é tudo, que não pode estar sempre presente e a
realidade se instala entre os dois que tentavam ser Um.”
14. MECANISMOS DE DEFESA: O Ego não é somente consciência. Há funções inconscientes nele, os famosos Mecanismos de Defesa. Através deles o
EGO dribla as exigências do ID e do SUPEREGO. "Diante de uma pulsão
proibida, cuja satisfação daria prazer se o superego
não se opusesse, há que convencer o princípio do prazer de que sucederá dor.
Para efetivar esse truque, o EGO aciona uma espécie de alarma, um pequeno sinal
de angústia, sempre que tal tipo de pulsão se lhe apresenta à porta. Como se
dissesse ao ID: veja como isso que aparece bom, na verdade, dói. E o ID,
enganado até certo ponto, cede energias para contrariar seus próprios fins
pulsionais. Basta então ativar os MECANISMOS DE DEFESA, carregados dessa
energia..." (O que é Psicanálise,
Fábio Herrmann, pág. 52 e 53).
15. Segundo Freud há três fases da sexualidade
humana (lembre-se do sentido amplo da sexualidade) que se desenvolvem entre
os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos: 1ª) Fase Oral = prazer
através da boca (ingestão de alimentos, sucção do seio materno, chupeta,
etc...) 2ª) Fase Anal = prazer
localizado primordialmente nas excreções e fezes, brincar com massas e com
tintas, etc... 3ª) Fase Genital ou Fálica = prazer principalmente nos órgãos
genitais e partes do corpo que excitam tais órgãos. Momento do surgimento do Complexo de Édipo.
16. COMPLEXO DE ÉDIPO = complexo de
sentimentos e afetos com componentes de agressividade, fúria e medo, paixões,
amor e ódio, oriundos dos desejos sexuais em relação aos genitores de sexo
oposto que acontece entre os 5 e 6 anos de idade. O complexo de Édipo se
manifesta no menino desejando a mãe e querendo eliminar o pai, seu concorrente.
O medo da castração por parte do pai faz
com que renuncie ao desejo incestuoso e aceite as regras ou a Lei da Cultura.
Na menina se manifesta pelo fato de descobrir que não tem o pênis-falo, e com
isto, sente-se prejudicada, tem "inveja do pênis". Ao perceber que a
mãe também não o tem, passa a desvalorizá-la e, nessa medida, se dirige para a
figura do pai, dotado de FALO e, portanto, cheio de poder e fascinação.
17. A INVEJA DO PÊNIS-FALO - De acordo com
a interpretação do psicanalista LACAN (nascido em Paris em 1901 e falecido
na mesma cidade em 1981), o que provoca inveja não é o pênis anatômico, mas o PÊNIS-FALO,
o objeto imaginário fálico, que tem o sentido de COMPLETUDE e de PLENITUDE
NARCÍSICAS. Neste sentido o homem
também tem inveja do pênis-falo. Com este sentido o FALO está
presente em todos os seres humanos de tal forma que a falta do pênis nas
meninas e mulheres simplesmente é negada. O falo é, em última análise, o
significado da falta, conforme o define Lacan.
“Tais
conceitos são importantes para o esclarecimento da idéia ‑ ou da acusação ‑ de
que Freud foi um machista impenitente, defensor da superioridade do homem
sobre a mulher. Freud fala da inveja do pênis, sem dúvida. A mulher teria
inveja do pênis, e sua ausência seria fonte de graves sentimentos de
inferioridade. Entretanto, aquilo que provoca inveja não é o pênis
anatômico, mas o pênis-falo, o objeto imaginário fálico, apto como tal a
investir quem o tenha de um valor de completude e de plenitude narcísicas.
Nessa medida, também o homem tem inveja fálica. Se o seu pênis é o falo,
isto é, se fica preso à etapa de desenvolvimento da libido, será sempre rondado
‑ e roído ‑ pelo medo da castração. Poderá perder o falo para ver-se possuidor
de um pênis apenas, com as chuvas e trovoadas eventuais que isso possa
acarretar. O pênis-falo não pode ser apenas potente: ele tem que ser
onipotente. O homem, nessa medida, pode sentir‑se inferiorizado ‑ ou impotente
‑ na medida em que não alcance um rendimento sexual que testemunhe essa
onipotência. A inveja fálica, de homens e mulheres, pode deslocar-se
para qualquer coisa que teria significado fálico, isto é: qualquer coisa que
implique plena expansão narcísica e pleno sentimento de completude. Esta
coisa pode ser a inteligência, a beleza física, a força do corpo, a voz, a
produção artística, o canto, a fama, a glória, o dinheiro ‑ o que quer que
seja. Dado que o falo é um objeto mítico, imaginário, impossível, urna vez que
não existe nada que possa conferir a quem quer que seja a completude ‑ a não
ser a morte ‑, a inveja fálica, que é o desejo de possuí‑lo, será sempre
presente, numa tentativa de retorno a uma atitude narcísica também
impossível. (Do livro: Os Sentidos da
Paixão, Companhia das Letras, 1987, págs. 307-327)
- Mas apesar de o menino
abandonar o desejo pela mãe por medo da castração ela não deixa de acontecer
para ambos os sexos e de forma simbólica de acordo com a interpretação de
Lacan. CASTRAÇÃO no sentido simbólico
significa a impossibilidade de retorno ao estado narcísico do qual fomos
expulsos com o nosso nascimento. CASTRAÇÃO significa a perda, a falta, o
limite imposto à onipotência do desejo. É um processo que já acontece desde o
corte do cordão umbilical. A rigor
quem castra é a mãe. Se a mãe permite a independência da criança, negando
formar um todo narcísico com ela, ela castra. A castração é um evento
absolutamente progressista na nossa vida e que torna possível a vida em
sociedade e a nossa autonomia.
Através da CASTRAÇÃO introduz-se a LEI DA CULTURA que é produto
de Eros e não de Thanatos. A Lei não existe para aniquilar o desejo e sim
para articulá-lo com a convivência social. "É a guardiã do desejo
na medida em que o encaminha no sentido de uma subordinação ao Princípio da
Realidade" (pág. 312, Os
Sentidos da Paixão, Hélio Pellegrino)
-
A CASTRAÇÃO nos faz sentir como seres incompletos,
carentes. Mostra-nos que é da brecha entre tudo o que se quer e aquilo que
se pode (princípio de Realidade) que nascem as possibilidades de movimentos do
desejo. Mas o seu exagero pode trazer conseqüências negativas como as neuroses.
15. Psicanálise, razão e consciência - Descobrir a existência do inconsciente não
é esquecer a consciência, a razão, e abandoná-las como algo ilusório e
inútil. É pela consciência, pela razão, que desvendamos e deciframos o
inconsciente. Em outras palavras, a razão não está descartada apesar
das forças irracionais inconscientes. Longe de desvalorizar a razão a
psicanálise exige que o pensamento racional não "faça concessões às idéias
estabelecidas, à moral vigente, aos preconceitos e às opiniões de nossa
sociedade, em que os enfrente em nome da própria razão e do pensamento."
(pág. 356, Convite à Filosofia,
Marilena Chauí)
16. Psicanálise e Ética - A psicanálise
mostrou que uma das causas dos distúrbios psíquicos é o rigor excessivo do
SUPEREGO, a CASTRAÇÃO excessiva. Quando isto acontece há dois caminhos não
éticos: ou a transgressão violenta de seus valores pelos sujeitos reprimidos ou
a resignação passiva de uma coletividade neurótica, que confunde neurose e
moralidade." (pág. 356, op. Cit.,
Marilena Chauí). Não éticos porque a violência é introduzida: violência da
sociedade que exige dos sujeitos padrões de conduta impossíveis de serem
realizados e, por outro lado, violência dos sujeitos contra a sociedade, pois
somente transgredindo e desprezando os valores estabelecidos poderão sobreviver.
Em suma é necessária a repressão dos desejos, da sexualidade, para ser possível
a convivência social e a ética "mas por outro lado a repressão
excessiva destruirá primeiramente a ética e depois a sociedade." (pág.
356, op. Cit. Marilena Chauí). Segundo Freud o sujeito da psicanálise é
responsabilizado, sim, por seu inconsciente pois "quem mais, além de
mim, pode se responsabilizar por algo que, embora eu não controle, não posso
deixar de admitir como parte de mim mesmo? Responsabilidade difícil de assumir,
esta - pelo estranho que existe em nós, age em nós e com o qual não queremos
nos identificar. No entanto, eticamente, é preferível que o sujeito arque
com as conseqüências dos efeitos de seu inconsciente, fazendo deles o início de
uma investigação sobre o seu desejo, a que ele permita que tais efeitos se
manifestem apenas na forma do sintoma. Ou, o que é ainda mais grave, que o
sujeito tente se desembaraçar do inconsciente, por meio dos atos de
intolerância que projetam no outro o que o eu não quer admitir em si mesmo. A
passagem por uma análise torna o sujeito não apenas mais responsável pelo
desejo que o habita, mas também preserva
as pessoas que lhe são mais próximas, aquelas que dependem de seu afeto e
de sua compreensão - filhos, parceiros, subordinados etc -, de se tornarem
objetos das projeções e das passagens ao ato de quem não quer assumir as
condições de seu próprio conflito." (pág. 32, Sobre Ética e Psicanálise, Maria Rita Kehl).
2. A
psicanálise e o mundo de hoje
(Do livro: Para que serve a psicanálise? - de
Denise Maurano, Jorge Zahar Editor, 2003, págs. 9-18 )
Eros e Comunicação
Esse apelo a se ligar aos outros
participa obviamente da história da humanidade, mas o que chamo a atenção
aqui é para o fato de, na contemporaneidade, termos inflacionado essa
estratégia. Assim, as pessoas recorrem mais facilmente a alguém ao
alcance da mão, ou ao alcance da linha telefônica, do que a um templo religioso
para se amparar. Da mesma forma, também não crêem mais nos poderes da
racionalidade para encontrarem uma fórmula para melhor viver. Parece que
estamos mesmo sob o império de EROS. E Eros não é apenas o deus do amor,
mas, tal como propôs a psicanálise, é sobretudo a tendência à promoção de
laços, tendência a estabelecer ligações.
É claro que a forma como isso se
dá, tête-à-tête ou via internet, faz diferença, mas o elemento motivador e a
natureza da busca, creio estarem inalterados, pelo menos por enquanto. O que a
psicanálise chamou de LIBIDO, energia de Eros, cobra incansáveis investimentos,
sobretudo no amor e na sexualidade, e traz em seu rastro a outra face da mesma
moeda: o ódio.
Falta, linguagem e psicanálise
Foi a inquietação da falta,
vivida na contemporaneidade como falta de amor, ou insatisfação sexual, que deu
origem á invenção da psicanálise. A psicanálise veio servir para tratar dos
impasses decorrentes disso. Cedo, Freud percebeu que aquilo que fazia sofrerem
as mulheres que ele atendia, e lhes fazia produzir sintomas inexplicáveis aos
olhos dos médicos de seu tempo, não eram senão diferente expressões de um mal
inexorável: o mal de amor. Cedo, ele se deu conta, também, de que o tratamento para isso passava pela
FALA, pelos efeitos do acionamento desse fantástico dispositivo que é a
fala. Através dela, nos incluímos nessa rede que nos envolve e tenta nos
articular uns com os outros. E não importa se se trata de um surdo-mudo:
certamente este também está incluído na estrutura de relações tecidas pela
LINGUAGEM.
É verdade que desde a invenção da
psicanálise até agora muita coisa mudou. Mudaram os costumes, a sociedade
certamente não é mais a mesma, diferente recursos para se lidar com a vida
dominam a cena contemporânea. Porém não creio que tenhamos nos deslocado do
apelo à libido como modo de operar com nossas inquietações. Muito pelo
contrário, como bem observou o inventor americano, acima mencionado, nunca
se produziram tantos artifícios para ampliarmos nossos laços. O sucesso das
SALAS DE BATE-PAPO e toda a correspondência veiculada pela internet o atestam. Isso
sem falar da exploração que o marketing faz da questão, erotizando todo e
qualquer objeto que se apresente ao consumo para melhor veiculá-lo. Assim,
diante da compatibilidade entre a natureza da inquietação que domina a cena
atual e a natureza da invenção psicanalítica, esta última continua sendo um
recurso privilegiado em nossos tempos. Com isso, quero dizer que diante dos
inúmeros sintomas decorrentes do MAL DE AMOR, que constitui a tônica do
mal-estar da atualidade, a psicanálise apresenta-se como opção para tratar dessa
questão. No que se refere a maneira de lidar com as inquietações amorosas,
as mudanças são acessórias, não fundamentais. Daí a pertinência da presença da
psicanálise. Afinal, seja bem ou mal falada, a psicanálise continua sempre
sendo lembrada.
Inúmeras propostas apresentam-se
a cada dia para responder a essa idéia de que o "bom exercício da
libido" resolve as dificuldades da vida. Desde o apelo ao consumo, seja de
carros, mulheres, drogas, medicamentos, conhecimento, informação, tecnologia e
tudo quanto se suponha que o dinheiro possa comprar, até as terapias mais
diversas, tudo vai no sentido de sanar aparentemente, apaziguar
imaginariamente, as pressões que movem esse apelo feito a Eros.
O que decorre dessa profusão de
estratégias disponíveis na cena contemporânea é que o caminho que um sujeito
trilha desde a constatação de seu mal-estar até chegar a um tratamento
psicanalítico é, freqüentemente, bastante alongado. Muitas vezes ele só recorre
à psicanálise depois de inúmeras tentativas fracassadas de suprimir seu
mal-estar. É como se a sensação de vazio e desamparo, que ocasionalmente
experimentamos de maneira mais grave, fosse um indicativo de uma doença que
acomete a uns poucos desprivilegiados, da qual teríamos a todo custo que nos
livrar o mais rápido possível. Tornamo-nos, assim, presas fáceis de
vendedores de ilusões. Não que eu tenha algo contra as ilusões, muito pelo
contrário: elas são alimentos fundamentais de nossas vidas. Sublinho apenas o
rico da manipulação sórdida, cruel, que se faz nesse campo.
A psicanálise perante a incompletude humana
Na contracorrente dessas
estratégias encontra-se a psicanálise. Por mais que em sua difusão ela tenha
sido propagada das formas mais estapafúrdias, sua proposta, desde seus
suados primórdios no rigor da ética cunhada por Freud, foi a de ser uma
estratégia para tratar desse vazio, que na maior parte do tempo
traduzimos por falta de alguma coisa ou falta de alguém. Sua intenção não
foi a de constituir-se como promessa de saná-lo. Aqui, o tratamento não é a
cura, já que não podemos nos curar da ferida de sermos humanos. Ou seja,
substituindo a idéia de cura como o que estaria na finalização de um
tratamento, por meio da extirpação de um mal, entra em cena o procedimento
investigativo do tratamento psicanalítico, que traz como uma de suas
conseqüências o efeito terapêutico. O vazio é impossível de ser
extirpado, mas cabe-nos encontrar meios menos nefastos de abordá-lo. Como
li num folhetim: "Não se pode mudar a direção do vento, mas pode-se
alterar a posição das velas."
Viver sem se haver com a dor
da falta, seja esta identificada ao que quer que seja, é simplesmente inumano.
Não podemos nos livrar daquilo que constitui propriamente a nossa humanidade, a nossa diferença em
relação aos outros animais. O que pode ser alterado é a maneira como vivemos
a experiência da vida, a posição que ocupamos ao nos defrontarmos com a falta
daquilo que supostamente iria nos tornar completos. Sugiro que a palavra
"psicopatologia" - em sua origem grega,
"psico-pathos-logia" - seja traduzida ao pé da letra: busca de
sentido (logia) daquilo que causa
espanto (pathos) à alma (psico). Sem dúvida que esta incompletude
nos espanta, e podemos reagir a isso, neurótica, psicótica ou perversamente....
Não pensem que estou defendendo
uma posição pessimista, do tipo que toma essa incompletude com um efeito de
fabricação com o qual teríamos que nos conformar. Não concordo com a idéia de
que Freud ou Lacan - psicanalista francês, que se propôs a retornar ao rigor de
Freud - sejam pessimistas. Defendo, sim, essa orientação ética que funda a
proposta psicanalítica, acolhendo a vida não em uma dimensão ideal, como
gostaríamos que ela fosse, mas em sua dimensão real. Sofremos os efeitos
desse real todas as vezes que nos confrontamos com o fato de que as coisas não
estão ao alcance de nossas mãos, como gostaríamos que estivessem.
Isso é duro? Certamente. A
expressão brasileira "cair na real" é primorosa na indicação da queda
de ilusões que decorre da confrontação com o real, porém, enganar sua existência,
na promessa de que pelas forças da mente ou do que quer que seja poderemos
escapar, intensificará, por conseqüência, nossa fragilidade - e não nossa força.
Afirmar a vida com tudo o que nela há, de alegria e de sofrimento, de leveza e
de dureza, é não à mutilação de nenhum de seus componentes. Mas obviamente, se
é simples falar assim, não é simples viver dessa forma. Somos facilmente
atraídos pela posição ressentida, "que injustiça fizeram contra
mim!". Ou, ainda, pelo vislumbre romântico que suspira por um ideal
jamais passível de realização, sob pena de, caso efetivado, perder todo o
encantamento. Assim estamos nós em nossa radical humanidade, nessa condição de
errantes, suplicantes de algo que nos oriente, que nos complete e acene com a
possibilidade de precisão na adequação de nossas ações, dado que nunca sabemos
direito se o que resolvemos fazer está certo ou não. Como humanos, subvertemos
as determinações do instinto. Não comemos meramente por fome, nossas atividades
sexuais não se limitam ás funções biológicas, nosso sono tampouco. Somos
afetados por inúmeras variáveis.
Nosso universo de necessidades
é intermediado pelo das representações. As coisas não são o que são, mas o
que representam para nós. Desta forma, podemos perder o apetite, ou comer
demais, se ficamos tristes; podemos optar pela abstinência sexual por uma razão
ideológica ou moral; podemos perder o sono diante de uma preocupação. O que nos
rege não é propriamente um instinto, mas algo de outra natureza que, que Freud
propõe chamar de PULSÃO.
A adequação de nossa percepção ao
que existe de fato é permeada por esse universo que nomeamos como campo da
LINGUAGEM. Isso quer dizer que, se não temos um acesso direto e objetivo às
coisas, inventamos um estratagema para contornar esse abismo que nos separa do
mundo: inventamos a linguagem. Ou seja, desenvolvemos, mas que qualquer
outro animal, nossa capacidade de nos comunicarmos por recursos simbólicos e
imaginários. Inventamos palavras para designar as coisas, nomear o que
nos falta; criamos ícones para adorar, ideologias para nos salvar do
desamparo.
Construímos, com o
desenvolvimento da linguagem, uma rede de elementos através da qual encontramos
meios de nos referendar. Situamos, com isso, o Outro a quem nos dirigimos.
Assim, eu não sou apenas Fulano de Tal, eu sou Fulano, filho de Sicrano, neto
de Beltrano, ou seja, sou parte de uma rede de relações, por onde apreendo
algo da enigmática significação de mim mesmo. Encontro-me dentro de uma
estrutura de parentesco, na qual assumo funções diferentes conforme o elemento
com o qual me relaciono: em relação aos meus pais sou filha, em relação aos
meus filhos ou mãe, e assim por diante.
Porém o universo de linguagem
é também o universo da mais absoluta arbitrariedade, afinal as palavras não são
as coisas, e seu sentido deixa sempre margem a diferente interpretações. É
por isso mesmo que os valores aos quais nos agarramos para nos proteger não
necessariamente nos protegem em definitivo. E isso vale tanto para as nossas
vidas individuais como para a história da humanidade.
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Narcisismo - Conta o mito que o jovem Narciso,
belíssimo, nunca tinha visto sua própria imagem. Um dia, passeando por um
bosque, viu um lago. Aproximou-se e viu nas águas um jovem de extraordinária
beleza e pelo qual apaixonou-se perdidamente. Desejava que o outro saísse das
águas e viesse ao seu encontro, mas como o outro parecei recusar-se a sair do
lago, Narciso mergulhou nas águas, foi às profundezas à procura do outro que
fugia, morrendo afogado. Narciso morreu de amor por si mesmo, ou melhor, de
amor por sua própria imagem ou pela auto-imagem. O narcisismo é o encantamento
e a paixão que sentimos por nossa própria imagem ou por nós mesmos porque não
conseguimos diferenciar o eu e o outro.
3. SONHOS
(Do livro “Freud
Básico”, Michael Kahn, ed. Civilização Brasileira, págs 201-231)
Senhoras e Senhores: Um dia, descobriu-se que os sintomas patológicos
de determinados pacientes neuróticos têm um sentido. Nessa descoberta,
fundamentou-se o método psicanalítico de tratamento. Acontecia que, no decurso
desse tratamento, os pacientes, em vez de apresentar seus sintomas,
apresentavam sonhos. Com isso, surgiu a suspeita de que também os sonhos teriam
um sentido.
- Sigmund Freud, Conferências
introdutórias
Freud considerava A interpretação
dos sonhos,(1) publicado em 1900, o
seu livro mais importante. De fato, ele contém riquezas extraordinárias.
Introduz o complexo de Édipo, a distinção entre o processo primário e processo
secundário, as origens infantis do funcionamento adulto e muito mais.
Entretanto, não era porque descrevia essas descobertas significativas que Freud
se orgulhava muito deste livro, mas sim porque, como seu título deixa claro,
anunciava ao mundo que ele realizara, em sua opinião, o que ninguém antes dele
tinha sido capaz de realizar: decifrar o código dos sonhos. Ele sabia que isto
era uma importante façanha, por sua própria dimensão; além disso, estava
convencido de que com isso desvendara a chave para compreender e tratar a
neurose. Se um terapeuta não interpretasse sonhos, Freud passou a acreditar,
ele não estava fazendo psicanálise.
O primeiro insight importante de Freud sobre a natureza dos sonhos foi que, a
exemplo dos sonhos despertos, os sonhos noturnos representam um desejo. Os
sonhos despertos expressam um desejo que a pessoa pode reconhecer. Quando
criança, eu sonhava em ser uma estrela de beisebol do meu time da primeira
divisão da cidade. Não tinha nenhuma vergonha disso. Meus amigos tinham sonhos
semelhantes, e os compartilhávamos livremente. Hoje em dia, sonho
ocasionalmente com poder passar toda uma manhã de domingo numa confeitaria,
lendo o New York Times - sem sentir
nenhuma culpa. Também não tenho vergonha deste sonho. Baseando-se no que
acontece nos sonhos despertos, Freud deduziu que os sonhos noturnos poderiam
também ser uma expressão dos desejos. Ele descobriu que os sonhos infantis são
freqüentemente uma expressão tão flagrante dos desejos quanto os sonhos
despertos. E relatou que uma de suas filhas, após um dia de jejum provocado por
uma enfermidade, sonhou com morangos, omelete e pudim.
Freud observou que também em
alguns sonhos de adultos o desejo é tão transparente, que pouca ou nenhuma
análise é preciso para compreendê-lo. Ele relatou que, se comesse comida
salgada no jantar, acordaria invariavelmente com sede à noite. Pouco antes de
acordar, sempre estava sonhando que desfrutava o mais delicioso e satisfatório
drinque imaginável. Então, acordava e tinha de beber algo de verdade. O fato de
estar com sede causava o desejo de beber, e o sonho representava a realização
desse desejo. (2)
No entanto, essa transparência é
rara. Nos sonhos que mais ricamente iluminam as forças inconscientes, o desejo
está oculto; este foi o importante insight
que Freud teve em seguida. Ele sustentou que o único meio de poder
descobrir o desejo é encorajar o sonhador a fazer associações livremente com os
elementos do sonho.
Não é difícil perceber por que
Freud considerava a interpretação dos sonhos tão importante. Ele acreditava que
todos os sonhos eram construídos do mesmo modo que os sintomas neuróticos. Como
acreditava que remover um sintoma neurótico dependia da apreensão do seu
significado inconsciente, interpretar um sonho seria um passo em direção à
cura, porque o significado do sonho revelaria parte do significado do sintoma.
O seu elegante sistema acabou se provando simples demais, mas ainda contém insights notáveis sobre o nosso mundo
onírico.
O MODELO DE FREUD
Neurose: A neurose é causada pelo recalque de desejos sexuais
inaceitáveis. O recalque não foi suficientemente completo para proteger a
pessoa da culpa inconsciente, daí a aflição da neurose. Os desejos encobertos
estão sob pressão, buscando expressão, e encontram essa expressão nos sintomas
neuróticos. Numa tentativa de ao menos evitar a culpa consciente, o desejo
incompletamente recalcado se disfarça, para poder passar pela censura que,
antes de tudo, o recalcou. Portanto, o sintoma deve ser decodificado para que
revele seu significado inconsciente.
Sonhos: Os desejos encobertos permeiam os sonhos. Ao detectar um
relaxamento da censura durante o sono, o desejo recalcado tenta se aproveitar
dessa oportunidade para se manifestar. No entanto, embora relaxada, a censura
não está de folga. Alguma função egóica montando guarda à noite reconhece que o
desejo sem disfarce causaria uma ansiedade suficiente para acordar a pessoa que
dorme. Assim, embora careça do poder de recalcar o desejo que tem em estado de
vigília, essa função dá um jeito de disfarçá-lo e, desse modo, proteger (em
geral) o descanso do indivíduo que está dormindo.
Os desejos inaceitáveis e
disfarçados causam o problema neurótico e devem ser decodificados. Os desejos
inaceitáveis e disfarçados que produzem o sonho podem ser decodificados,
desmascarando desse modo um dos desejos geradores de sintomas.
Podemos compreender por que Freud
chamou a interpretação dos sonhos de estrada soberana para o inconsciente, e
por que ele achava que ela era a chave indispensável para psicanalisar a
neurose.
O modelo de Freud não mais
descreve inteiramente a teoria psicanalítica da neurose. Embora os desejos
sexuais reprimidos provavelmente desempenhem um importante papel em muitos
problemas da vida, eles não são mais considerados como a única causa. Como
vimos em capítulos anteriores, uma ampla variedade de desejos e medos
inconscientes pode gerar problemas.
A ORIGEM DO SONHO
Freud descobriu que os sonhos
eram uma resposta a algo que o sonhador vivenciara no dia anterior. Alguma
cadeia de associações relacionadas àquele acontecimento (que pode ter sido um
pensamento ou um acontecimento de fato) conduziu a um desejo que tinha de ser
recalcado, por ser inaceitável para o sonhador. À medida que a censura relaxa
durante o sono, o desejo busca se expressar.
O QUE A CENSURA FAZ
Freud chamou os acontecimentos
lembrados do sonho de seu conteúdo manifesto. O desejo oculto,
chamou de conteúdo latente. A censura converte o conteúdo latente no
sonho manifesto, distorcendo-o. Os principais processos pelos quais a
distorção é efetuada são a condensação e o deslocamento. O seguinte
estudo de caso é uma ilustração.
Um cliente meu
sonhou que assistia a uma filmagem. Uma parelha de cavalos estava sendo
conduzida até a beira de um penhasco, com a intenção de forçá-los a pular para
a morte. Embora soubesse que era apenas um filme e que os animais estavam
completamente a salvo, o sonhador teve de virar o rosto quando a parelha se
aproximou da beira do precipício.
A primeira
associação que ele fez foi de cavalos com "prostitutas".
(Observação: No original, a associação
foi de horses com whores)
Então ele se
lembrou de uma conversa telefônica com um velho amigo, que ocorrera no dia do
sonho. Muitos anos antes, ele e esse amigo tinham conseguido dinheiro para
pagar a faculdade trabalhando como "parceiros de dança" a bordo de um
cruzeiro. No telefonema do dia anterior, o amigo, relembrando, havia dito:
"Não passávamos de uma dupla de prostitutas, não é mesmo?"
Ambos haviam
desfrutado as viagens e o fato de serem tirados para dançar. Meu cliente
lembrou que, em um dos cruzeiros, seu amigo quebrara a regra fundamental e
dormira com uma passageira muito atraente. Ele tinha muita inveja da coragem
rebelde do seu amigo e, acima de tudo, da sua invejável experiência sexual.
Suas associações em relação ao
aparente, mas irreal, perigo que os cavalos corriam:
Parece que os
cavalos são vítimas de abusos e assassinatos. Tenho certeza que na verdade eles
são estrelas mimadas do cinema. Penso que o mesmo acontece com algumas
prostitutas de classe alta. Todos têm pena delas e pensam nelas como
dependentes de drogas maltratadas e desamparadas. Mas imagino que algumas delas
levam uma vida maravilhosa - de um luxo preguiçoso, imersas no mundo do sexo.
Eu lhe disse que ele parecia
estar com inveja.
Sabe de uma coisa, acho que estou
mesmo. Estou realmente farto desta vida burguesa que preparei para mim. Acho
que tenho uma fome secreta pelo submundo, pelos bas-fonds. Adoraria ser uma
prostituta. Adoraria ser uma prostituta sofisticada, como éramos no navio, só
que eu dormiria com os passageiros e seria bem pago. Eu seria bem pago, mas a
recompensa mais importante seria o interminável sexo-sem-responsabilidade.
Estou totalmente farto das minhas responsabilidades burguesas.
Pararemos por aqui em relação ao
andamento desse sonho. Como a maioria dos sonhos, este contém todo um nexo de
significados, dos quais descobrimos apenas alguns poucos. Alguns psicanalistas
afirmaram seriamente, pelo menos em parte, que se entendêssemos totalmente um
sonho qualquer de um determinado paciente, entenderíamos a análise inteira.
Confesso que fico feliz quando meu cliente e eu trabalhamos juntos um
significado útil para um sonho.
No sonho relatado, o resíduo
diurno gerador é a conversa telefônica do cliente com seu amigo e suas últimas
observações sobre eles serem prostitutas. O conteúdo latente é o desejo do
cliente de se eximir das suas responsabilidades e encontrar um paraíso sexual.
"Prostitutas" é deslocado para cavalos. Toda uma saga é condensada
numa única imagem, onde ele assiste à filmagem de uma breve cena de cinema.
Está longe de ser óbvio que a
maioria dos sonhos representa desejos. No entanto, após interpretar inúmeros
sonhos seus e dos seus clientes, Freud estava convencido de que a realização do
desejo caracteriza todos os sonhos. Seus críticos o desafiaram, citando os
sonhos ansiosos e os sonhos punitivos. Ele podia facilmente lidar com esses
últimos, uma vez que o superego fora acrescentado ao seu sistema: os sonhos
punitivos representam a realização de um desejo do superego, uma de cujas
tarefas mais importantes é punir o seu anfitrião pelos desejos que considera
inaceitáveis. Os sonhos ansiosos deram mais trabalho a Freud, e, trinta anos
após a publicação original de O mal-estar
na civilização, ele ainda estava revisando o livro, lutando com o problema.
Hoje em dia, com cem anos de reflexão sobre a questão, provavelmente é seguro
dizer que, embora a teoria da realização do desejo seja muito útil para a
compreensão de um sonho, nenhuma fórmula única pode fazer justiça à riqueza da
nossa vida onírica. Consideraremos isso mais adiante.
Nos dias que antecederam a
elaboração deste capítulo, eu estivera inutilmente folheando livros e textos de
Freud, para encontrar um outro sonho ilustrativo adequado. Na noite antes de
começar a escrevê-lo, tive um sonho do qual me lembrei inusitadamente bem.
Quase nunca me lembro dos meus sonhos, portanto esse foi um presente inusual do
meu inconsciente.
Sou um jogador de um time de futebol
americano e estou dentro do vestiário, prestes a entrar em campo para começar a
jogar. O time é composto de homens e de mulheres. Todos estão vestidos com
roupas do dia-a-dia. Reconheço que as mulheres são ex-alunas minhas. Percebo
que deve haver mais de onze jogadores prestes a entrar em campo. Embora não
seja responsabilidade minha sou apenas um jogador do time-, assumo o dever de
contá-los, enquanto penso: "Cadê o assistente do treinador, que deveria
ser responsável por isso?" Começo a contar cabeças em voz alta, e Mimi
Rollins começa a enunciar números aleatórios em voz alta, para me distrair.
Fico furioso e digo: "Isso é uma grosseria, e, além do mais, não é
engraçado; é uma estupidez." Pronuncio a última palavra com tal ênfase,
que ela me soa desnecessariamente agressiva, dada a banalidade do deslize de
Mimi.
Acordei satisfeito e grato por
ter tido esse sonho necessitado. Então me pus a explorar minhas associações.
Vi Mimi na
semana passada. Ela parecia estar bem. Contar os jogadores é como contar as
cadeiras, antes de os alunos chegarem para a minha aula. Algumas vezes,
enquanto as desempilho e as conto, digo para mim mesmo que realmente não acho
ser essa uma atribuição do instrutor, mas sempre a exerço, de qualquer modo.
Arrependo-me de não ter levado adiante minha carreira de jogador de futebol
americano na faculdade. Considero agora que foi um erro ter parado. Acho as
garotas da equipe atraentes. O que eu disse para Mimi é uma desagradável
paráfrase de uma frase de um dos meus filmes prediletos, dita pela personagem
de Debra Winger, em Shadowlands, para nocautear um trouxa mulherengo:
"Você está tentando ser grosseiro ou não passa de um estúpido?" Mimi
Rollins me conduz a Mimi, da ópera La Boheme. Penso nos meus amigos Bill e
Sarah, e no tempo em que Bill adorava ópera e discos de ópera, e eles eram
fascinados por Pavarotti. Naquela época, Bill e Sarah eram em grande medida meu
pai e minha mãe. Eles me davam de comer e tomavam conta de mim, e certamente me
amavam muito. Eu adorava ficar na casa deles. Depois do falecimento de Sarah,
tudo isso mudou. A minha figura maternal se fora, e as circunstâncias da minha
vida haviam mudado, de modo que eu ia à cidade de Bill e Sarah com menor
freqüência.
Minha interpretação:
Conformar-me-ei
com apenas uma das possíveis interpretações. À medida que reflito sobre o sonho
e as associações, o sonho me parece revelar um poderoso anseio inconsciente de
ser cuidado, de ser uma criança dependente. Em minha vida consciente, sou
compulsivamente responsável e cuidadoso. O sonho diz que tenho muita raiva de
assumir esse papel. Meu pai faleceu quando eu tinha treze anos, e minha mãe
fechou-se em sua dor, deixando-me bastante sozinho por alguns anos. Quando por
fim ela apareceu, foi mais como sedutora do que como cuidadora. Há muito sei
que isso foi psicologicamente custoso, mas meu conhecimento é meramente
intelectual. A intensidade do anseio com o qual essas perdas me deixaram e a
raiva por ter sido abandonado pegaram-me de surpresa, quando interpretei o
sonho.
SIMBOLISMO ONÍRICO
Desde o começo do seu trabalho
com os sonhos, Freud estava interessado nos símbolos oníricos. Por exemplo, um
rei e uma rainha em um sonho representam os pais do sonhador; o príncipe ou a
princesa, o sonhador. Freud passou a ter a convicção de que os símbolos,
particularmente os símbolos sexuais, podiam ser fidedignamente interpretados e
podiam elucidar o conteúdo latente do sonho. Ele compreendeu o perigo: ao
interpretar os símbolos, o intérprete corre o risco de impor suas fantasias
sobre o sonhador; por outro lado, as interpretações geradas pela livre
associação do sonhador pareciam mais confiáveis. Entretanto, Freud passou a
acreditar que, apesar dos riscos, o modo mais poderoso de interpretar um sonho
era combinar a livre associação do sonhador com o conhecimento a respeito de
símbolos universais do intérprete.
Na primeira edição de A interpretação dos sonhos, havia muito
pouca menção ao simbolismo. Em cada uma das duas edições seguintes, Freud deu
maior atenção a esse assunto. Na quarta edição, havia uma seção inteira
dedicada a ele, um tópico que Freud estudara a fundo e pelo qual se interessava
muito. Seus escritos sobre o simbolismo revelam uma certa ambivalência. Por um
lado, como estava preocupado em que a psicanálise não fosse vista como
excêntrica ou ocultista, encontrava-se extremamente relutante, temendo dar a
impressão de que estava escrevendo um novo "livro dos sonhos". No
tempo de Freud, como no nosso, havia livros que ensinavam o leitor a
interpretar um sonho de modo a obter dele um conselho específico. O conselho
poderia ser sobre amor ou negócios, ou praticamente sobre qualquer assunto;
incluía previsões específicas sobre os resultados de um determinado
empreendimento. Isso era feito por intermédio da tradução de certos símbolos.
Por exemplo, em um desses livros, sonhar com uma carta significava perigo à
frente. Funeral significava noivado. Se o sonho contivesse tanto uma carta
quanto um funeral, o sonhador era instruído a juntar os dois símbolos e antever
problemas para o noivado de alguém. Em certas subculturas americanas, esses
livros ainda são comuns. Freqüentemente, eles trazem recomendações a respeito
de decisões de jogo, embora, como os livros do século XIX, também forneçam
conselhos para a vida. Ao menos desde a época de Freud, a maioria das pessoas
educadas e certamente todos os cientistas avaliam que esses livros não passam
de bobagens supersticiosas.
Freud estava ansioso por evitar
qualquer alusão de que estivesse escrevendo mais um desses livros. Por outro
lado, quanto mais ele estudava os símbolos nos sonhos, no folclore, nos dia
letos populares e nas brincadeiras, mais se convencia de que tinha razão em
conferir significado, particularmente significado sexual, aos símbolos
oníricos. Objetos alongados referiam-se ao genital masculino; objetos rasos e
receptivos, ao genital feminino e ao aparelho reprodutor; e subir degraus ou
escadas, ao intercurso sexual.
Freud observou que não é difícil
perceber como escalar pode representar copulação. Assinalou que, na escalada,
chegamos ao topo em uma série de movimentos rítmicos, há uma crescente falta de
ar e, depois, com alguns pulos ligeiros, chegamos embaixo mais uma vez. O
padrão rítmico da copulação é reproduzido na subida da escada. (3)
A interpretação dos sonhos
começou a incluir cuidadosa atenção às associações do sonhador, assim como uma
cautelosa interpretação dos símbolos oníricos feita pelo analista.
"Cautelosa" quer dizer que, embora os símbolos parecessem possuir um
significado universal, ainda era importante prestar cuidadosa atenção ao
contexto no qual o símbolo aparecia.
Nos dias que se sucederam à escrita
da primeira parte deste capítulo, procurei exemplos de Freud sobre simbolismo
onírico, mas não fiquei satisfeito com nenhum que encontrei. Então, meu
inconsciente me favoreceu mais uma vez com um sonho relevante, este frouxamente
vinculado aos personagens de uma ópera muito conhecida, A flauta mágica, de Mozart. Nessa ópera, Sarastro é o arquétipo do
bom pai. Ele faz com que Tamino, o herói, e Pamina, a heroína, passem por
algumas perigosas provações de iniciação, mas somente porque quer que eles o
substituam como líderes da sua comunidade. Ele permite que Tamino toque a sua
flauta mágica protetora, à medida que este e Pamina passam pelas provações. A
ária principal de Sarastro diz respeito ao seu compromisso com o perdão e com a
rejeição da vingança.
O sonho: estou
andando por um campo perto de um rio, quando um homem se aproxima e me pede
para ajudá-lo a consertar um complexo artefato composto de vários tipos de
metal. Começo a desmontá-lo, tirando pinos, esperando ser capaz de lembrar de
onde os tirei, quando chegar a hora de remontá-lo. Desmonto a maior parte dele
e trabalho numa pequena parte de ferro fundido, cujo desmonte é um
quebra-cabeça - uma parte tem de ser deslocada de um modo especial para que a
outra parte se solte. Enquanto trabalho nessa parte, compreendo que estamos
fazendo isso por Sarastro e vejo perto de nós a sua bandeira, que tem o formato
de um chapéu cônico. Espero e escuto, esperando ouvir a grande ária de Sarastro
sair da bandeira. Então compreendo que, quando era menino, Sarastro me levou
para passear pelos campos nas proximidades. Consigo terminar de desmontar a
parte restante, todas as peças caem no chão, e eu acordo.
Associações: A
flauta mágica não é um símbolo fálico qualquer, mas um símbolo de um poderoso
falo. A manipulação do quebra-cabeça é a masturbação. Sarastro fez a flauta
mágica de uma árvore da floresta durante, creio, uma tempestade. Sarastro, o
pai cuidador definitivo, é um amoroso líder filosófico que não acredita em
vingança. Ele voluntariamente entrega sua flauta (= pênis) a Tamino e protege
Pamina da mãe tenebrosa. Quando eu era menino, um dos meus verdadeiros pavores
nos tempos que se seguiram à morte do meu pai era que agora não havia nada me
separando da minha mãe. Tentei me trancar em um quarto, para evitar sua
histeria. Conscientemente, para evitar sua histeria, e inconscientemente, estou
certo, para evitar a súbita proximidade edipiana. Muitas vezes, minha mãe me
parecia tenebrosa e perigosa. Gosto que me peçam ajuda. Sempre ajudo. Faz parte
da necessidade de ser responsável. Tenho certeza que é um redutor da culpa e
talvez da vergonha. Lembrome de certa vez em que estava dirigindo e me sentia
chateado por algum ou outro motivo, quando o motorista de um carro me parou e
me pediu informações, que eu pude fornecer. Meu humor melhorou
consideravelmente depois disso.
Como em todos os sonhos, existem
muitos significados que podem ser atribuídos. Adiante, uma possível
interpretação.
Anseio por um
pai que apoiará, em vez de desaprovar, a minha sexualidade: masturbação
infantil e heterossexualidade adulta. Anseio por um pai que entusiasmadamente
me tornará o herdeiro do seu poder fálico, um pai que perdoará de fato minha
rivalidade, hostilidade e eventual (amargo) triunfo edipiano. Anseio por um pai
que me protegerá da minha mãe tentadora e perigosa. Se eu for uma pessoa útil,
talvez isso faça com que ele esteja mais disposto a me perdoar e apoiar.
Está claro por que Freud
considerava que a interpretação dos sonhos era uma ferramenta de importância
crucial no tratamento da neurose. A neurose é causada por um conflito
inconsciente. Como esse conflito deve ser descoberto e revelado ao paciente?
Embora fosse esperado que as livres associações do paciente sobre outras
questões que não os sonhos revelassem muito a respeito do conflito, para Freud
parecia haver apenas um caminho correto, "a estrada soberana":
interpretação dos sonhos.
O ESTADO ATUAL DA
INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS
Um século após a publicação de A interpretação dos sonhos, a relação
entre a psicanálise e a interpretação dos sonhos mudou amplamente. Muitos
psicanalistas não mais consideram esta última um componente central do seu
trabalho. O psicanalista Paul Lippman escreve que, exceto os seguidores de C.
G. Jung, que continuam a enfatizar o trabalho com os sonhos, o caso de amor do
analista com os sonhos parece ter acabado .(4)
Ele atribui este fato às mudanças teóricas ocorridas, inclusive, por incrível
que pareça, uma gradual redução da ênfase na revelação do inconsciente. Isso
está associado com um movimento em direção a um tipo de terapia relacional, na
qual o relacionamento entre o terapeuta e o cliente é examinado não tanto para
revelar o inconsciente, mas para substituir essa revelação.
Lippman também atribui uma outra
causa a esse afastamento dos sonhos. Ele diz que os analistas sempre foram
ambivalentes quanto a trabalhar com sonhos. E assinala que Freud nos ensinou a
interpretar os sonhos. Isso implicava uma obrigação de superar a censura
onírica e solucionar o enigma onírico. Algumas vezes, freqüentemente de fato, a
censura vence, forçando o analista a se retirar confuso ou encontrar um jeito
de culpar o sonhador. Isso pode acabar fazendo com que o analista se sinta
desconcertado e confuso. Não é surpresa, diz Lippman, que os analistas tenham
ficado aliviados por terem uma boa razão para se libertar do fardo da
interpretação dos sonhos.
Lippman acrescenta uma
interessante especulação. Vivemos em uma época em que a cultura está se
afastando do mundo natural em direção a um mundo virtual. Aparentemente, as telas
externas estão se tornando mais interessantes para nós do que as internas. Os
sonhos talvez sejam a mais interna de todas, de modo que o fato de os
terapeutas psicodinâmicos estarem se afastando dos sonhos pode ser uma
expressão da propagação do âmbito do mundo eletrônico.
Acredito que, para muitos
psicoterapeutas das profundezas, o afastamento da interpretação dos sonhos não
implica uma diminuição do interesse no processo inconsciente do cliente.
Embora alguns terapeutas
relacionais estejam se afastando de uma ênfase na revelação do inconsciente do
cliente, isso não e de modo algum verdadeiro para todos eles. Merton Gill. (5) o pai da terapia relacional, e
Heinz Kohut, (6) fundador da escola
da psicologia do self, estavam ambos firmemente convencidos da importância de trazer
à superfície as raízes antigas e encobertas dos problemas existenciais do
cliente. Muitos dos seus descendentes contemporâneos ainda se mantêm
comprometidos com isso.
Freud estava tão convicto de
serem os sonhos a estrada soberana para o inconsciente, que certamente ficaria
entristecido de ver a interpretação dos sonhos desaparecer da atual tendência
da prática clínica. Mas ocorre que os sonhos não são de modo algum a única
estrada soberana, e talvez não sejam nem mesmo a mais confiável. Há muito que
se aprender sobre os processos inconscientes do cliente, atentando para os
detalhes de suas histórias, dos padrões sutis de suas vidas e dos modos como
constroem a relação com o terapeuta.
Entretanto, os terapeutas
psicodinâmicos provavelmente se precipitaram ao se afastarem dos sonhos. A
reflexão sobre eles enriquece a nossa vida e o nosso trabalho clínico. É
lamentável, como diz Lippman, que os psicanalistas tenham desenvolvido a
compreensão equivocada de que cada sonho encobre um significado ao qual se deve
chegar rapidamente, para que o analista pareça competente. Isso faz com que
tanto o sonhador quanto o ouvinte se afastem rapidamente demais do sonho em si.
Há muito proveito em ponderar ludicamente sobre as imagens manifestas. No primeiro
sonho descrito linhas atrás, eu poderia ter gasto mais tempo no jogo de futebol
e no meu arrependimento por ter abandonado a carreira de jogador universitário.
Poderia ter explorado meus sentimentos a respeito de trabalhar cercado de
muitas mulheres atraentes. Minha atração pelos versos de Shadowlands parece
muito promissora. A interpretação a que cheguei é sem dúvida reveladora e
proveitosa, mas pode ser apenas o começo de uma escavação das riquezas do
sonho.
É improvável que a interpretação
dos sonhos venha a ocupar novamente um lugar central na psicoterapia profunda,
exceto naquela praticada pelos junguianos. Para eles, a estrada soberana conduz
a mais do que apenas o inconsciente individual do paciente. Como acreditam que
todos compartilhamos um "inconsciente coletivo" universal, eles vêem
o simbolismo onírico como indício necessário dos aspectos desse inconsciente
coletivo, que estão influenciando o paciente agora.(7)
Apesar de muitos terapeutas
não-junguianos se afastarem da interpretação dos sonhos, parece provável que
sempre haverá terapeutas psicodinâmicos de todas as escolas que continuarão
fascinados pelos sonhos e considerarão produtivo trabalhar com eles. Talvez os
sonhos não sejam a estrada soberana para o inconsciente, ou pelo menos não a única.
Entretanto, contêm riquezas significativas. Quando um sonho (nosso ou do
cliente) é explorado, menos como um código desafiador e mais como um poderoso
poema pessoal, explorado ludicamente e sem uma preocupação específica pelo seu
significado, pode ser esclarecedor e enriquecedor.
4. Freud: A
consciência pode conhecer tudo? - Marilena Chauí
(Fonte: Filosofia, Ed. Ática, São Paulo, ano 2000, pág. 83-87)
Freud
escreveu que, no transcorrer da modernidade, os humanos foram feridos três
vezes e que as feridas atingiram o nosso narcisismo,
isto é, a bela imagem que possuíamos de nós mesmos como seres conscientes
racionais e com a qual, durante séculos, estivemos encantados. Que feridas foram essas?
A primeira
foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a Terra não estava no centro
do Universo e que os homens não eram o
centro do mundo. A segunda foi causada
por Darwin, ao provar que os homens descendem de um primata, que são apenas um
elo na evolução das espécies e não seres especiais, criados por Deus para
dominar a Natureza. A terceira foi
causada por Freud com a psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor
parte e a mais fraca de nossa vida psíquica.
Na obra Cinco ensaios sobre a psicanálise, Freud
escreve:
"A
Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor na sua própria
casa, mas também está reduzido a contentar-se com informações raras e
fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida
psíquica... A divisão do psíquico num psíquico consciente e num psíquico
inconsciente constitui a premissa fundamental da psicanálise, sem a qual ela
seria incapaz de compreender os processos patológicos, tão freqüentes quanto
graves, da vida psíquica e fazê-los entrar no quadro da ciência... A
psicanálise se recusa a considerar a consciência como constituindo a essência
da vida psíquica, mas nela vê apenas uma qualidade desta, podendo coexistir com
outras qualidades e até mesmo faltar. "
A psicanálise - Freud era médico
psiquiatra. Seguindo os médicos de sua
época, usava a hipnose e a sugestão no tratamento dos doentes mentais, mas
sentia-se insatisfeito com os resultados obtidos.
Certa vez,
recebeu uma paciente, Ana O., que
apresentava sintomas de histeria, isto
é, apresentava distúrbios físicos
(paralisias, enxaquecas, dores de estômago) sem que houvesse causas físicas
para eles, pois eram manifestações corporais
de problemas psíquicos. Em lugar de usar a hipnose e a sugestão,
Freud usou um procedimento novo: fazia com que Anna relaxasse num divã e falasse. Dizia a ela palavras
soltas e pedia-lhe que dissesse a primeira palavra que lhe viesse à cabeça ao
ouvir a que ele dissera - posteriormente, Freud denominaria esse procedimento
de "técnica de associação livre".
Freud percebeu que, em certos
momentos, Anna reagia a certas palavras e não pronunciava aquela que lhe viera
à cabeça, censurando-a por algum motivo ignorado por ela e por ele. Notou
também que, em outras ocasiões, depois de fazer a associação livre de palavras,
Anna ficava muito agitada e falava muito. Observou que, certas vezes, algumas
palavras a faziam chorar sem motivo aparente e, outras vezes, a faziam
lembrar-se de fatos da infância, narrar um sonho que tivera na noite anterior.
Pela conversa, pelas reações da paciente, pelos sonhos narrados e pelas
lembranças infantis, Freud descobriu que a vida consciente de Anna era
determinada por uma vida inconsciente, que tanto ela quanto ele desconheciam.
Compreendeu também que somente interpretando as palavras, os sonhos, as
lembranças e os gestos de Anna chegaria a essa vida inconsciente.
Freud descobriu,
finalmente, que os sintomas histéricos tinham três finalidades:
1. contar indiretamente aos outros e a si mesma
os sentimentos inconscientes;
2. punir-se por ter tais sentimentos;
3.
realizar, pela
doença e pelo sofrimento, um desejo inconsciente intolerável.
Tratando de
outros pacientes, Freud descobriu que, embora conscientemente quisessem a cura,
algo neles criava uma barreira, uma resistência inconsciente à cura.
Por quê? Porque os pacientes sentiam-se interiormente
ameaçados por alguma coisa dolorosa e temida, algo que haviam penosamente
esquecido e que não suportavam lembrar. Freud descobriu, assim, que o
esquecimento consciente operava simultaneamente de duas maneiras:
1. como resistência à terapia;
2.
sob a forma da
doença psíquica, pois o inconsciente não esquece e obriga o esquecido a
reaparecer sob a forma dos sintomas da neurose e da psicose.
Desenvolvendo
com outros pacientes e consigo mesmo esses procedimentos e novas técnicas de
interpretação de sintomas, sonhos, lembranças, esquecimentos, Freud foi criando
o que chamou de análise da vida psíquica ou psicanálise, cujo objeto central
era o estudo do inconsciente e cuja finalidade era a cura de neuroses e
psicoses, tendo como método a interpretação e como instrumento a linguagem
(tanto a linguagem verbal das palavras quanto a linguagem corporal dos sintomas
e dos gestos).
A vida psíquica - Durante toda sua
vida, Freud não cessou de reformular a teoria psicanalítica, abandonando alguns
conceitos, criando outros, abandonando algumas técnicas terapêuticas e criando
outras. Não vamos, aqui, acompanhar a
história da formação da psicanálise, mas apresentar algumas de suas principais
idéias e inovações.
A vida
psíquica é constituída por três instâncias, duas delas inconscientes e apenas
uma consciente: o id, o superego e o ego (ou o isso, o super-eu e o eu). Os dois primeiros são
inconscientes; o terceiro, consciente. (observação importante do prof. Laerte: tem também o aspecto
inconsciente manifestado por exemplo pelos mecanismos de defesa)
O id é formado por instintos, impulsos
orgânicos e desejos inconscientes, ou seja, pelo que Freud designa como pulsões.
Estas são regidas pelo princípio
do prazer, que exige satisfação imediata.
O id é a energia dos instintos
e dos desejos em busca da realização desse
princípio do prazer. É a libido.
Instintos,
impulsos e desejos, em suma, as pulsões, são de natureza sexual e a
sexualidade não se reduz ao ato sexual genital, mas a todos os desejos que
pedem e encontram satisfação na totalidade de nosso corpo.
Freud descobriu
três fases da sexualidade humana que se diferenciam pelos órgãos que sentem
prazer e pelos objetos ou seres que dão prazer. Essas fases se desenvolvem
entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos, ligadas ao desenvolvimento
do id:
1.
a fase oral, quando
o desejo e o prazer localizam-se primordialmente na boca e na ingestão de
alimentos e o seio materno, a mamadeira, a chupeta, os dedos são objetos do
prazer;
2.
a fase anal, quando
o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nas excreções e as fezes,
brincar com massas e com tintas, amassar barro ou argila, comer coisas
cremosas, sujar-se são os objetos do prazer;
3.
e a fase genital
ou fase fálica, quando o desejo
e o prazer localizam-se primordialmente nos órgãos genitais e nas partes do
corpo que excitam tais órgãos. Nessa fase, para os meninos, a mãe é o objeto do
desejo e do prazer; para as meninas, o pai.
No centro do id, determinando toda a vida psíquica,
encontra-se o que Freud denominou de complexo
de Édipo, isto é, o desejo incestuoso pelo pai ou pela mãe. É esse o desejo
fundamental que organiza a totalidade da vida psíquica e determina o sentido de
nossas vidas. O superego, também
inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem ao id, impedindo-o de satisfazer
plenamente seus instintos e desejos. É a repressão, particularmente a sexual.
Manifesta-se à consciência indiretamente, sob a forma da moral, como um
conjunto de interdições e de deveres, e por meio da educação, pela produção da
imagem do "eu ideal" isto é, da pessoa moral, boa o virtuosa. O superego ou censura desenvolve-se num
período que Freud designa como período
de latência, situado entre os 6 ou 7 anos e o início da puberdade ou
adolescência. Nesse período, forma-se nossa personalidade moral e social, de
maneira que, quando a sexualidade genital ressurgir, estará obrigada a seguir o
caminho traçado pelo superego.
O ego ou o eu é a
consciência (observação do prof.
Laerte: mas também marcado pelo inconsciente), pequena parte da vida
psíquica, submetida aos desejos do id
e à repressão do superego. Obedece
ao princípio da realidade, ou seja,
à necessidade de encontrar objetos que possam satisfazer ao id sem transgredir as exigências do
superego. O ego, diz Freud, é
"um pobre coitado", espremido entre três escravidões:
1.
os desejos insaciáveis do id,
2.
a severidade repressiva do superego
3.
e os perigos do mundo exterior.
Por esse motivo, a forma
fundamental da existência para o ego
é a angústia. Se se submeter ao id, torna-se imoral e destrutivo; se se submeter ao superego, enlouquece de desespero, pois
viverá numa insatisfação insuportável; se não se submeter à realidade do mundo,
será destruído por ele. Cabe ao ego
encontrar caminhos para a angústia existencial. Estamos divididos entre o princípio do prazer (que não conhece
limites) e o princípio da realidade
(que nos impõe limites externos e internos).
Ao ego-eu, ou seja, à consciência, é dada uma função dupla: ao mesmo
tempo recalcar o id, satisfazendo o superego, e satisfazer o id,
limitando o poderio do superego. A
vida consciente normal é o equilíbrio encontrado pela consciência para realizar
sua dupla função. A loucura (neuroses e psicoses) é a incapacidade do ego para realizar sua dupla função,
seja porque o id ou o superego são excessivamente fortes,
seja porque o ego é excessivamente
fraco.
O inconsciente, em suas duas
formas, está impedido de manifestar-se diretamente à consciência, mas consegue
fazê-lo indiretamente. A maneira mais
eficaz para a manifestação é a substituição, isto é, o inconsciente oferece à
consciência um substituto aceitável por ela e por meio do qual ela pode
satisfazer o id ou o superego. Os substitutos são imagens
(isto é, representações analógicas dos objetos do desejo) e formam o imaginário
psíquico, que, ao ocultar e dissimular o verdadeiro desejo, o satisfaz
indiretamente por meio de objetos substitutos (a chupeta e o dedo, para o seio
materno; tintas e pintura ou argila e escultura para as fezes, uma pessoa amada
no lugar do pai ou da mãe).
Além dos substitutos reais
(chupeta, argila, pessoa amada), o imaginário inconsciente também oferece
outros substitutos, os mais freqüentes sendo os sonhos, os lapsos e os atos
falhos. Neles, realizamos desejos inconscientes, de natureza sexual. São a
satisfação imaginária do desejo.
Alguém sonha, por exemplo, que
sobe uma escada, está num naufrágio ou num incêndio. Na realidade, sonhou com
uma relação sexual proibida. Alguém quer dizer uma palavra, esquece-a ou se
engana, comete um lapso e diz uma outra que nos surpreende, pois nada tem a ver
com aquela que se queria dizer. Realizou
um desejo proibido. Alguém vai andando por uma rua e, sem querer, torce o pé e
quebra o objeto que estava carregando. Realizou um desejo proibido.
A vida psíquica dá sentido e
coloração afetivo sexual a todos os objetos e a todas as pessoas que nos
rodeiam e entre os quais vivemos. Por isso, sem que saibamos por que, desejamos
e amamos certas coisas e pessoas, odiamos e tememos outras. As coisas e os
outros são investidos por nosso inconsciente com cargas afetivas de libido. É
por esse motivo que certas coisas,
certos sons, certas cores, certos animais, certas situações nos enchem de
pavor, enquanto outros nos enchem de bem-estar, sem que o possamos
explicar. A origem das simpatias e
antipatias, amores e ódios, medos e prazeres está em nossa mais tenra infância,
em geral nos primeiros meses e anos de nossa vida, quando se formam as relações
afetivas fundamentais e o complexo de
Édipo.
Essa dimensão imaginária de nossa
vida psíquica - substituições, sonhos, lapsos, atos falhos, prazer e desprazer
com objetos e pessoas, medo ou bem-estar com objetos ou pessoas - indica que os
recursos inconscientes para surgir indiretamente à consciência possuem dois
níveis:
-
o nível do conteúdo
manifesto (escada, mar e incêndio, no sonho; a palavra esquecida e a
pronunciada, no lapso; pé torcido ou objeto partido, no ato falho; afetos
contrários por coisas e pessoas)
-
e o nível do
conteúdo latente, que é o conteúdo inconsciente real e oculto (os desejos
sexuais).
Nossa vida normal se passa no
plano dos conteúdos manifestos e,
portanto, no imaginário. Somente uma
análise psíquica e psicológica desses conteúdos, por meio de técnicas especiais
(trazidas pela psicanálise), nos permite decifrar o conteúdo latente que se dissimula sob o conteúdo manifesto.
Além dos
recursos individuais cotidianos; que nosso inconsciente usa para manifestar-se,
e além dos recursos extremos e dolorosos usados na loucura (nela, os recursos
são os sintomas), existe um outro
recurso, de enorme importância para a vida cultural e social, isto é, para a
existência coletiva. Trata-se do que
Freud designa com o nome de sublimação.
Na sublimação, os desejos inconscientes
são transformados em uma outra coisa, exprimem-se pela criação de uma outra
coisa: as obras de arte, as ciências, a religião, a filosofia, as técnicas, as
instituições sociais e as ações políticas. Artistas, místicos, pensadores,
escritores, cientistas, líderes políticos satisfazem seus desejos pela
sublimação e, portanto, pela realização de obras e pela criação de instituições
religiosas, sociais, políticas, etc.
Porém, assim
como a loucura é a impossibilidade do ego
para realizar sua dupla função, também a sublimação pode não ser alcançada e, em
seu lugar, surgir uma perversão social
ou coletiva, uma loucura social ou coletiva. O nazismo é um exemplo de
perversão, em vez de sublimação. A propaganda, que induz em nós falsos desejos
sexuais pela multiplicação das imagens de prazer, é outro exemplo de perversão
ou de incapacidade para a sublimação.
O inconsciente,
diz Freud, não é o subconsciente. Este
é aquele grau da consciência como consciência passiva e consciência vivida
não-reflexiva, podendo tornar-se plenamente consciente. O inconsciente, ao
contrário, jamais será consciente diretamente, podendo ser captado apenas
indiretamente e por meio de técnicas especiais de interpretação desenvolvidas
pela psicanálise.
A psicanálise
descobriu, assim, uma poderosa limitação às pretensões da consciência para
dominar e controlar a realidade e o conhecimento. Paradoxalmente, porém,
nos revelou a capacidade fantástica da razão e do pensamento para ousar
atravessar proibições e repressões e buscar a verdade, mesmo que para isso seja
preciso desmontar a bela imagem que os seres humanos têm de si mesmos.
Longe de
desvalorizar a teoria do conhecimento, a psicanálise exige do pensamento que
não faça concessões às idéias estabelecidas, à moral vigente, aos preconceitos
e às opiniões de nossa sociedade, mas que os enfrente em nome da própria razão
e do pensamento.
A consciência é
frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco
de desvendar e decifrar o inconsciente. Aceita e decide enfrentar a
angústia para chegar ao conhecimento de que somos um caniço pensante, como
disse o filósofo Pascal.